Maioria das operações de serviços digitais já são tributadas com tarifas mais altas do que as discutidas na Europa.
A transformação digital teve impacto sobre os governos e as relações internacionais, envolvendo questões de ordem tributária. A discussão tem como foco a arrecadação sobre a receita de corporações bilionárias, fornecedoras de bens intangíveis e dispersos, com venda e consumo em qualquer local do planeta.
O debate sobre esse tema acirra ânimos em torno de conceitos como mercadoria, serviços e royalties sobre propriedades intelectuais. Mas enquanto o mundo se debruça sobre uma disputa tributária global, o Brasil discute competência de tributação por Estados (ICMS) ou prefeituras (ISS), além da relação entre os diferentes entes federativos.
O economista Bernard Appy, um dos mentores da PEC 45, que está em trânsito no Congresso Nacional, com proposta de substituição gradual de ICMS, ISS, IPI, PIS e Cofins por um único imposto de valor agregado, lembra que a contenda tributária em torno de negócios digitais, principalmente das big techs, envolve dois tipos de tributos – da renda, hoje sob escrutínio da OCDE, e do consumo de serviços digitais remunerados, como o de plataformas de streaming.
No último caso, mesmo fornecido por uma organização de um outro país, a cobrança é mais simples e até a OCDE tem proposta fechada sobre a necessidade de o fornecedor do serviço se registrar no país consumidor e recolher impostos. Já no Brasil, o sistema de tributação coloca alguns serviços em zona cinzenta entre ICMS e ISS.
A tributação do lucro é mais complicada. As gigantes digitais escolhem países de baixa tributação, como a Irlanda, com cota de 12% sobre a renda, para concentrar a venda para os demais. Os Estados Unidos resolveram a questão com a decisão de tributar no país as operações de subsidiárias de empresas americanas, enquanto a Europa mira maior tributação local.
A tributação do consumo é mais simples. Appy explica que a alíquota uniforme para base ampla de bens e serviços da PEC 45 facilitaria o registro local de fornecedores e a cobrança sobre consumo. “Big techs não querem ser vistas como sonegadoras”, diz. O desafio seriam as empresas pequenas registradas em países com menos compliance fiscal.
Com instrumentos como imposto de renda na fonte ou royalties, CID remessa e outros, a maioria das operações de serviços digitais já são tributadas por aqui com tarifas até mais altas do que as discutidas atualmente na Europa, o que estimula instalações de subsidiárias locais.
Neste caso, o sonho brasileiro de fazer parte da OCDE poderia trazer até perda de receita caso a solução da forma como encaminhada hoje chegue ao país. E, segundo Appy, as discussões atuais ainda deixam de fora questões como tributação de consumo pago com dados, a exemplo de serviços de mecanismos de busca e redes sociais. “O escambo é tributável por legislação de relação de consumo”, diz.
Segundo Anna Flávia Greco, mestre em direito tributário e direito tributário internacional, sócia do Felsberg Advogados, a tributação sobre a renda está estabelecida em conceitos de direito tributário internacional e relacionada à sede ou estabelecimento físico permanente, onde os lucros são tributados. A exclusão de atividades complementares, como marketing ou logística, beneficia organizações globais como a da Amazon, com sede em Luxemburgo e atividades auxiliares espalhadas pela Europa.
No caso da tributação do consumo, atualmente são discutidos no Brasil três ou quatro projetos dedicados ao tema digital. Um deles, o PL 2358/2020, de autoria do deputado João Maia (PL/RN), mira pessoa jurídica domiciliada no Brasil, com receita bruta local acima de R$ 100 milhões, ou no exterior, com receita bruta global acima de R$ 3 bilhões, com base de cálculo incluindo publicidade em plataforma digital para usuários brasileiros, plataforma digital para venda de bens e serviços e transmissão de dados de usuários brasileiros, com alíquota progressiva de 1% a 5% e apoio ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT).
O imposto sobre negócios digitais como proposto na OCDE, sem retenção na fonte, com incidência sobre receita bruta e não sobre lucro, caracterizaria imposto regressivo (com alíquotas mais baixas para valores mais altos) e resultaria em queda na arrecadação local. “Já temos guerra fiscal interna. Devemos ter cuidado de não importar problemas que não são nossos”, diz Anna. Ela lembra ainda que o imposto sobre pagamentos digitais, ventilado pelo governo nos moldes da extinta CPMF, traria vícios semelhantes – incide sobre todos independentemente de capacidade contributiva e ainda é regressivo, cumulativo, arrecadatório e não dá direito a crédito. “As demais propostas em curso desoneram as cadeias produtivas”, explica.
FONTE: Valor Econômico – Por Martha Funke — Para o Valor, de São Paulo