Especialistas elogiam proposta para cesta básica e não cumulatividade de contribuições enquanto questionam modelo de direito a crédito.
O projeto de lei complementar (PLP) de regulamentação da reforma tributária no consumo é sólido e bem estruturado, mas há pontos polêmicos que devem gerar emendas no Congresso ou disputas judiciais, avaliam tributaristas.
No campo do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), a não cumulatividade ampla é elogiada, mas há preocupação com a regra que vincula o direito ao crédito ao efetivo pagamento dos tributos na etapa anterior, o que delega ao contribuinte uma tarefa da fiscalização, dizem especialistas. Crítica semelhante vai para a responsabilidade solidária que as plataformas digitais terão no recolhimento do IBS e da CBS das operações feitas por intermédio delas.
Outro assunto que pode gerar disputas judiciais é a vedação à tomada de crédito do IBS e CBS pagos pelas empresas em bens e serviços oferecidos aos funcionários, como celulares, pacotes de dados e planos de saúde, entre outros, a menos que sejam usados exclusivamente na atividade econômica do contribuinte. O assunto é polêmico. Há tributaristas que defendem a medida.
Também há aspectos considerados “louváveis”. Um deles é a Cesta Básica Nacional de Alimentos, que terá alíquota zero de CBS e IBS e na proposta do governo tem apenas 15 itens. Carnes não fazem parte da lista. O cashback foi igualmente bem recebido.
Seguro de vida e plano de saúde são despesa operacional para calcular IR e Cofins ” — Lina Santin.
Tributaristas e economistas acreditam que a reforma tornará o ambiente mais propício à atração de investimentos, com melhora no ressarcimento dos tributos pagos sobre ativo imobilizado e também com disciplinamento dado para o reequilíbrio econômico-financeiro nos contratos de longo prazo.
O Imposto Seletivo (IS), novo tributo criado pela reforma, para bens e serviços nocivos à saúde ou meio ambiente, também deve provocar polêmicas. A cobrança sobre automóveis pode ser um deles.
A seguir alguns dos pontos destacados por especialistas:
Cesta básica
Com apenas 15 itens, a cesta teve abordagem “notavelmente parcimoniosa e focada, direcionando benefícios fiscais apenas para produtos essenciais ao consumo real da maioria da população brasileira”, diz Daniel Duque, gerente da Inteligência Técnica do Centro de Liderança Pública (CLP). A lista não inclui carnes, que entraram em um dos regimes diferenciados, com alíquota reduzida em 60%.
O tributarista e economista Eduardo Fleury, sócio do FCR Law, antevê uma disputa acirrada nos próximos meses com setores que tentarão “engordar” a lista da cesta básica. “O argumento do governo será de que, quanto maior a lista, maior vai ser a alíquota final.”
Cashback
Nas disputas setoriais para redução das alíquotas da CBS e do IBS – em alimentos, por exemplo, avalia Fleury, o governo deve tentar reforçar o papel do cashback para as famílias mais pobres. “Do ponto de vista distributivo, de arrecadação e também da alíquota final, é o mais correto. Não faz sentido isentar produtos majoritariamente consumidos pelos mais ricos”, argumenta Fleury, que é autor de estudos defendendo o mecanismo.
Ele nota ainda que, pela proposta atual, as famílias inscritas no Cadúnico terão 20% de cashback sobre todos os demais gastos que não aqueles com tratamentos específicos, como gás de cozinha, luz e água. “Vinte por cento é exatamente o que se calcula que as famílias que estão entre as 10% mais pobres gastam com alimentos. Então, é como se todo o consumo de alimentos desse grupo ficasse isento.”
Plataformas digitais
Uma disposição do PLP que parece atribuir ao contribuinte um papel do Fisco, diz a tributarista Ana Cláudia Utumi, do Utumi Advogados, é a responsabilidade das plataformas digitais de recolher o IBS e a CBS sobre as operações realizadas por seu intermédio. Isso, estabelece o PLP, acontece em substituição ao fornecedor, caso este seja residente ou domiciliado no exterior, ou em solidariedade com o contribuinte, nos casos em que ele for residente ou domiciliado no país. “Em vários países a plataforma fica sujeita a prestar dados sobre o fornecedor para a fiscalização atuar, em vez de a responsabilidade pelo imposto ser jogada para a plataforma digital. A plataforma não tem como fiscalizar isso”, defende a tributarista.
Benefícios de empresas
Outra disposição que deve gerar polêmica e disputas judiciais, diz Edison Fernandes, sócio da FF Advogados, é a vedação à tomada de crédito do IBS e CBS pagos pelas empresas em bens e serviços oferecidos para uso e consumo pessoal de funcionários e administradores. A lei considerou como bens e serviços de uso e consumo pessoal a disponibilidade de bens imóveis, veículos e equipamentos de comunicação, serviços de comunicação, planos de saúde, educação, alimentação e bebidas e seguros. A exceção fica para bens e serviços de uso e consumo pessoal os usados exclusivamente na atividade econômica do contribuinte.
Para Fernandes há grande campo de debate sobre a disponibilidade de bens como carros ou celulares, que são usados para o trabalho e que irão gerar discussão. “Como irá se estabelecer que são aplicados ‘exclusivamente’ para a atividade econômica?”
Novo sistema tributário deve tornar o Brasil mais atrativo para negócios” — Luca Mercadante.
A exposição de motivos do PLP apresentado pelo governo trata esses bens e serviços como remuneração indireta – os chamados fringe benefits. “Mas parte desses serviços e bens disponibilizados são remuneração indireta ou são instrumentos de trabalho?”, questiona a tributarista Lina Santin, sócia do Salusse Marangoni Parente e Jabur. Ela lembra ainda que seguro de vida e planos de saúde são consideradas despesas operacionais para o cálculo do Imposto de Renda (IR) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). “Se são despesas operacionais para essa tributação, não há sentido em não gerar crédito para IBS e CBS. O que se espera é similitude entre as regras tributárias. Tudo o que é operacional deve ser creditado.” Sem o crédito, os tributos virarão custo para a empresa, diz.
“Essa é uma discussão que existia no âmbito do IR mas não no do ICMS e ISS e não faz sentido trazer isso para a CBS e o IBS”, avalia Utumi. “Isso vai gerar um trabalho braçal grande das empresas, não sei se é realmente relevante em termos de arrecadação e pode ser fonte de litígio importante”, diz ela.
A medida não tem avaliação consensual. Para Fleury, é correta a decisão do governo. “Quando a empresa arca com benefícios ao trabalhador como plano de saúde, aluguel de imóvel ou plano de celular, é como se estivesse repassando isso ao funcionário em vez de pagar em salário. E o gasto com salário, diferente de outros insumos da empresa, não gera crédito.”
Gastos com bens e serviços considerados essenciais ou instrumentos de trabalho – como uniformes, equipamentos de proteção (EPIs) -, por sua vez, poderão gerar crédito, mas essa regulamentação ficou para mais tarde, acrescenta. “Será um ajuste fino. Poderá ser aceito nesta categoria, por exemplo, o plano de internet que uma empresa paga a funcionário que trabalha em home office. O projeto dá liberdade para regulamentar essas exceções”, explica.
Fleury nota que a não distinção entre o que é gasto para consumo pessoal e gasto com insumos abre uma brecha tributária. “No limite, sem essa restrição legal, qualquer um poderá montar uma empresa, colocar lá várias despesas de consumo pessoal e pedir crédito delas”, alerta.
O tributarista avalia ainda que o custo das empresas não vai aumentar por causa desse entendimento já que, atualmente, a maior parte das empresas não consegue crédito nenhum sobre essas despesas, nem de ICMS nem de PIS-Cofins. “Quando essa reforma entrar em vigor, isso continuará igual. Só que o acesso à compensação do IVA com o restante das despesas ficará muito mais fácil”, diz.
Atração de investimentos
O novo sistema tributário deve tornar o Brasil mais atrativo para negócios, afirma Luca Mercadante, economista da Rio Bravo Investimentos. Hoje, diz, o Brasil ocupa a 184ª posição, de um total de 190, do ranking “Doing Business”, do Banco Mundial. “O regime mais simples reduz o tempo gasto para pagar impostos, que é um dos critérios do índice de competitividade.”
Para Fernandes, há pontos importantes no PLP e que podem ajudar investimentos. Um deles se refere ao crédito dos impostos pagos na aquisição de ativo imobilizado, algo que pode levar quatro anos no sistema atual. Pelo projeto, lembra, há também possibilidade de ressarcimento do IBS e CBS pagos na aquisição dos ativos, algo que não estava claro na emenda.
O projeto também traz, diz, um disciplinamento para o reequilíbrio econômico-financeiro de contratos de longo prazo, que passarão a ser tributados com IBS e CBS, mas poderão tomar créditos de suas aquisições. Além disso, ressalta, a não cumulatividade ampla do IBS e da CBS, questão em torno da qual havia grande apreensão, está clara nas disposições do PLP.
Regimes específicos
Entre os pontos que geraram dúvidas do PLP, destaca Fleury, está o cálculo das alíquotas de alguns regimes específicos, que ficaram “bastante complicados”, em sua avaliação. “Em alguns casos, como de restaurantes e hotéis, a intenção é manter a carga tributária atual, então o TCU [Tribunal de Contas da União] vai fazer uma conta de quanto se paga hoje para definir a alíquota equivalente. Mas ficou complexo.”
“No caso do setor financeiro também restaram algumas dúvidas sobre, por exemplo, a cobrança sobre desconto de duplicata e tributação de Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs). Os fundos de investimento imobiliários também parecem ter ficado em uma área cinzenta”, avalia Fleury.
No caso do setor imobiliário, o governo propôs uma regra para evitar bitributação de imóveis construídos no passado, que pagaram tributos, mas não vão gerar crédito, mas não ficou claro o que vai acontecer para os projetos construídos daqui para frente, diz. “Além disso, não se faz distinção entre o que é imóvel comercial ou residencial. Se for tributado igualmente daqui para frente, pode gerar reclamação.”
Crédito só com pagamento
Para Santin, do Salusse, o artigo 28 do PLP, que vincula o direito ao efetivo pagamento dos tributos na etapa anterior certamente irá gerar discussão no Congresso. “Isso fere a própria regra geral da não cumulatividade e do direito ao crédito amplo. Com certeza teremos emendas para alterar isso.”
“Se a interpretação correta é essa de atrelar o crédito ao pagamento na etapa anterior, será bem complicado”, diz Utumi. “O pagamento dos tributos é um problema do Fisco, e não da empresa.”
Já para Fleury, a medida faz sentido. “Para o Fisco, isso evita que ocorram situações em que o comprador paga pelo produto com o imposto e o fornecedor embolsa o valor, o que significa que o governo perde ao dar o crédito. Embora possa gerar alguma reclamação por parte do setor privado, ainda que difusa, avalia Fleury, essa exigência será importante para a alíquota final. “Esse sistema está no coração da estimativa da alíquota final, é o que garante que ela seja a menor possível”, diz.
Imposto Seletivo
No campo do Imposto Seletivo, Santin destaca a tributação de automóveis. O PLP, porém, ressalta, confere alíquota zero para automóveis sustentáveis, o que pode beneficiar os carros elétricos.
Há uma preocupação no efeito regressivo que essa medida pode trazer, diz ela. “Há o apelo ambiental hoje, mas o carro elétrico é muito mais caro do que o veículo a combustão e é consumido por um nicho de altíssima renda para a realidade brasileira. É preciso considerar que atualmente não há acesso a carros elétricos a preços populares.”
Além disso, diz Santin, os carros elétricos são importados atualmente, o que pode repetir um vício do antigo Inovar Auto, que conferiu menor tributação a carros importados em detrimento dos produzidos no país. O programa, lembra ela, foi condenado pela Organização Mundial do Comércio.
FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR MARTA WATANABE, MARCELO OSAKABE, ANAÏS FERNANDES E MARSÍLEA GOMBATA — DE SÃO PAULO