O ano de 2025 caminha para a metade de seu segundo trimestre, e o seu encerramento marcará também o fim de uma era. Décadas de um sistema de tributação sobre o consumo, que no Brasil representa cerca de 44% da arrecadação [1], terão seu derradeiro ciclo. Com a aprovação da Emenda Constitucional nº 132/2023 e da mais nova Lei Complementar nº 214/2025, um novo paradigma para a tributação sobre o consumo terá início já em janeiro de 2026, quando o contribuinte verá as primeiras cobranças do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS).
A nova tributação sobre o consumo, após vários anos de longas discussões (que culminaram com uma apressada aprovação pelo Congresso Nacional, em 2023), surge com a promessa de simplificar o sistema tributário, reduzir a litigiosidade e aumentar a eficiência na arrecadação.
Sobre a simplificação do sistema tributário, apesar do longo e confuso período de transição que se avizinha — no qual o contribuinte deverá lidar com um sistema misto, onde subsistirão os PIS/Cofins, ICMS, ISS e IPI com o IVA dual (CBS/IBS)—, é seguro dizer que será alcançada, ao menos no que tange à arrecadação. Sejamos sinceros, o simples fato de desaparecerem o confuso cálculo “por dentro” do ICMS e o método subtrativo indireto do PIS/Cofins já será um grande alívio para as mais de 1.500 horas gastas por ano [2] com obrigações fiscais.
E a arrecadação será mais eficiente? Certamente! Afinal, a forma de recolhimento dos tributos, que inclui até um modelo de split payment [3], reduzirá a possibilidade de o contribuinte até mesmo postergar o pagamento de tributos.
Redução de litigiosidade
Contudo, quanto à redução da litigiosidade, considerando o histórico nacional e, principalmente, as diversas dúvidas que o novo sistema trará (como tudo o que é novo sempre traz), há poucas esperanças de que venha a se concretizar. Aliás, a baixa litigiosidade está intimamente ligada à sensação de justiça fiscal, sendo certo que esta passa ao largo dos objetivos da reforma que restou aprovada. Enquanto houver injustiça fiscal, com pouca percepção de retorno da carga tributária, continuará a existir litigiosidade.
Não bastasse, a opção política pelo modelo de Imposto sobre Valor Agregado (IVA) dual — que preserva a autonomia tributária da União, estados e municípios — suscita dúvidas quanto à efetiva racionalização do contencioso tributário. É que, diferentemente das experiências internacionais que adotaram IVAs centralizados, a exemplo da União Europeia, o modelo brasileiro de IVA dual preserva a capacidade tributária ativa dos entes federados. E, neste ponto, residem sérios problemas processuais.
Segundo o artigo 156-B da Constituição (incluído por Emenda Constitucional nº 132/2023), “os Estados, o Distrito Federal e os Municípios exercerão de forma integrada, exclusivamente por meio do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços, as competências administrativas relativas ao imposto”. Contudo, o §2º, inciso V, do mesmo artigo, dispõe que “a fiscalização, o lançamento, a cobrança, a representação administrativa e a representação judicial relativos ao imposto serão realizados, no âmbito de suas respectivas competências, pelas administrações tributárias e procuradorias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.
Assim, ao invés de concentrar a gestão tributária, optou-se por mantê-la pulverizada, reafirmando a autonomia federativa. Essa decisão, no entanto, tende a aprofundar a fragmentação do sistema e comprometer a efetividade da prometida simplificação tributária. Em termos práticos, o contribuinte continuará sujeito a múltiplas fiscalizações, a exigências administrativas distintas e a interpretações divergentes quanto à aplicação da legislação do IBS. Como bem observa Heleno Torres, “o IVA dual brasileiro, longe de unificar o tratamento tributário, recria um ambiente de pluralidade interpretativa” [4].
Liticonsórcio
Outro problema, facilmente percebido no texto da reforma, reside na necessidade de formação de litisconsórcio passivo necessário em ações que versem sobre a validade da obrigação tributária.
De acordo com o artigo 114 do Código de Processo Civil, o litisconsórcio será necessário quando a natureza da relação jurídica exigir a presença de todos os interessados para a validade da sentença. Assim, impugnações ao IBS deverão contar com a citação dos estados, dos municípios e do Distrito Federal interessados. Tal situação, além de incrementar a complexidade processual, poderá gerar nulidades em razão da ausência de formação correta do polo passivo, prolongando a duração dos litígios e aumentando a insegurança jurídica.
Temos ainda o Projeto de Lei Complementar nº 108/2024, que regulamenta o Comitê Gestor do IBS, e que estabelece, em seu artigo 92, §3º, que “é vedado às autoridades julgadoras, no âmbito do processo administrativo tributário, afastar a aplicação ou deixar de observar a legislação tributária sob o fundamento de inconstitucionalidade ou de ilegalidade”.
Tal vedação, salvo melhor juízo, fere frontalmente o princípio do devido processo legal (artigo 5º, LIV, da Constituição), ao impedir que o julgador administrativo reconheça a nulidade de normas inconstitucionais ou ilegais. Como cediço, a administração pública, tal como o Poder Judiciário, está obrigada a observar a Constituição em toda a sua atuação, inclusive ao declarar a inaplicabilidade de normas incompatíveis [5].
Processo administrativo tributário
A restrição imposta pelo PLP 108/24 esvazia a função garantidora do processo administrativo tributário, transformando-o em mera instância homologatória dos interesses arrecadatórios do Estado. Como consequência, impõe-se ao contribuinte a judicialização compulsória de suas pretensões, contrariando a lógica de celeridade e economicidade que deveria reger o contencioso administrativo.
Enfim, uma análise crítica do novo modelo de tributação revela que a reforma tributária, embora motivada pelo discurso da simplificação, tende a gerar efeitos contrários no âmbito do contencioso tributário. A manutenção da capacidade ativa autônoma dos entes federativos e a vedação ao controle de constitucionalidade no processo administrativo comprometem a segurança jurídica, o acesso à Justiça e o devido processo legal, pilares fundamentais do Estado democrático de direito.
É imprescindível que, na regulamentação infraconstitucional do novo sistema, sejam instituídos mecanismos que atenuem a fragmentação federativa, harmonizem a interpretação da legislação tributária e restabeleçam as garantias processuais dos contribuintes.
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[1] aqui
[2] Segundo o Banco Mundial, empresas gastam até 1.501 horas para pagar impostos no Brasil.
[3] A implementação do split payment, previsto nos artigos 31 e seguintes da LC n. 214/2025, consiste em uma modalidade de arrecadação na qual a parcela devida ao Fisco é automaticamente separada e enviada ao governo no momento da liquidação financeira da transação, tornando o processo mais seguro e simplificado, de acordo com a Receita Federal.
[4] TORRES, Heleno Taveira. Impostos sobre o consumo e o IVA dual no Brasil. Revista de Direito Tributário Atual, v. 49, 2024.
[5] Vide artigo 2º da Lei n. 9.784/1999.
FONTE: CONSULTOR JURÍDICO – POR GILLIARD NOBRE ROCHA