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CRIPTOATIVOS NO JUDICIÁRIO: O CERCO COMEÇOU A FECHAR?

18 de junho de 2025

Se os criptoativos são o novo ouro digital, é mais do que hora de garantir que não permaneçam trancados em cofres cujo paradeiro e segredo só o devedor conhece.

A prática não é nova: devedores contumazes têm recorrido aos criptoativos como rota de fuga contra a atuação do Judiciário, driblando os mecanismos legais de rastreamento e bloqueio de bens. Na prática, basta converter bens rastreáveis em criptoativos para que, como em um passe de mágica, o patrimônio do devedor se torne invisível até mesmo aos mais sofisticados mecanismos de rastreamento dos credores e do Judiciário. Protegidos por chaves privadas, transacionados por meio de plataformas descentralizados e armazenados em “carteiras” inacessíveis, os criptoativos seguem escapando das ferramentas tradicionais de rastreamento e bloqueio do Judiciário.

Enquanto o Sisbajud se comunica com bancos tradicionais, os criptoativos atravessam fronteiras, passam por trocas anônimas e muitas vezes repousam, intocados, em carteiras virtuais. O recado é claro: quando o patrimônio migra para a blockchain, o adeus aos credores se materializa diante das barreiras à persecução desses ativos digitais.

Um importante ponto de inflexão ocorreu em 17 de fevereiro de 2025, quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu, ainda que de forma incipiente, a necessidade de adaptação do sistema judicial à realidade dos criptoativos. No julgamento do REsp 2127038/SP, a 3ª Turma expressamente reconheceu a possibilidade de expedição de ofícios às exchanges com a finalidade de localizar e penhorar criptoativos. A medida, embora juridicamente óbvia – afinal, o devedor responde com todos os seus bens, inclusive os digitais -, precisou ser expressamente afirmada pelo tribunal superior, diante da resistência de muitos juízes em lidar com bens de natureza tão diversa.

O voto do relator, ministro Humberto Martins, teve caráter pedagógico: a ausência de regulamentação específica não constitui óbice à penhora de bens dotados de valor econômico. Criptoativos, por mais sofisticados que sejam, não deixam de ser bens e sua roupagem não lhes confere o poder de desaparecer da esfera patrimonial do devedor. A decisão, na prática, contribui para desmontar um argumento recorrente dos devedores: a ausência de indícios formais – como a declaração dos criptoativos no Imposto de Renda – não pode servir de pretexto para inação judicial. Eis uma das ironias do sistema: a dificuldade de localizar o criptoativo acaba se convertendo em salvo-conduto para escondê-lo, institucionalizando a fraude patrimonial em sua forma mais moderna.

É certo que a luta dos credores pela efetiva satisfação de seus créditos está longe de ter chegado ao fim. Embora a sinalização do STJ represente um avanço, o Judiciário ainda caminha a passos lentos na adoção de medidas concretas e eficazes. A expedição de ofícios às exchanges por exemplo, segue sendo realizada, na prática, por meio de cartas físicas e e-mails, revelando um anacronismo operacional que contrasta com a fluidez tecnológica dos ativos que se pretende alcançar. Em um ambiente onde os criptoativos circulam em segundos, a resposta institucional ainda opera em ritmo analógico.

O precedente, cumpre destacar, tão somente autoriza a adoção legítima de medidas investigativas voltadas às exchanges sediadas no Brasil, cujas atividades já se encontram submetidas à Instrução Normativa RFB nº 1.888/2019 e à Lei nº 14.478/2022. Nessa perspectiva, é plenamente viável que o magistrado determine a expedição de ofícios para obtenção de dados cadastrais, histórico de transações e saldos mantidos em operações ou custódias realizadas por essas plataformas, rompendo, assim, o anonimato que historicamente protegeu os detentores de criptoativos que atuam sob sua mediação.

A decisão insere-se claramente em um movimento mais amplo de institucionalização e aprimoramento técnico do Judiciário frente aos ativos digitais.  Como exemplo, destaca-se o Acordo de Cooperação Técnica nº 133/2024, firmado entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a ABCripto – principal entidade representativa do setor de criptoativos, que congrega diversas exchanges sediadas no Brasil. O acordo tem por objetivo o desenvolvimento do sistema “CriptoJud”, uma iniciativa que pretende transpor para o universo dos criptoativos a lógica de rastreamento e constrição patrimonial já consolidada pelo Sisbajud.

Naturalmente, o desafio persiste sob camadas ainda mais complexas. Ativos armazenados em cold wallets permanecem fora do alcance das exchanges. A volatilidade do mercado dificulta a conversão dos ativos penhorados e a multiplicidade de jurisdições impõe entraves à cooperação internacional. Ainda assim, o discurso da impossibilidade começa a soar menos como uma limitação técnica e mais como um chamado à inovação, exigindo atuação proativa de juízes e legisladores diante da crescente sofisticação dos meios de ocultação patrimonial.

O que se desenha é um novo contorno da responsabilidade patrimonial. A tecnologia pode ser complexa, mas o raciocínio é simples: se é bem, se tem valor, deve estar à disposição para a satisfação da execução. O adeus aos credores começa a ser enfrentado com medidas pragmáticas, ainda que não definitivas. Se os criptoativos são o novo ouro digital, é mais do que hora de garantir que não permaneçam trancados em cofres cujo paradeiro e segredo só o devedor conhece.

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR EDUARDO DE A. PARENTE E ERIK NAVROCKY E VINÍCIUS P. UEDA

 

 

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