SC COSIT 75/25 trata trust com transparência fiscal plena, gerando críticas por tributar beneficiários mesmo sem direito adquirido.
A recém-publicada Solução de Consulta COSIT 75 de 2025 (SC COSIT 75/25) pretendeu analisar os aspectos tributários de um trust irrevogável e discricionário, constituído em Delaware (EUA) por pessoa jurídica estrangeira, à luz da lei 14.754/23. Trata-se da primeira – e polêmica – manifestação da Receita Federal sobre o tema, após a edição da “lei das Offshores“, que instituiu um regime de transparência para tributação e reporte de ativos alocados a tais estruturas fiduciárias.
Nos termos da referida lei, os trusts não possuem personalidade jurídica própria e tampouco constituem patrimônio destacado para fins tributários. A legislação determina que os bens, direitos e rendimentos alocados a um trust sejam atribuídos diretamente a uma pessoa física – seja o instituidor ou o(s) beneficiário(s) – conforme as particularidades do trust e o momento da (presumida) transferência de titularidade do respectivo patrimônio. A norma exige a identificação da pessoa física que, para fins fiscais, será considerada a efetiva titular, cabendo a esta a declaração dos bens e direitos e o recolhimento dos tributos devidos no Brasil sobre os rendimentos e ganhos de capital realizados. Resumidamente, este é o regime de transparência criado pela lei 14.754/23 para os trusts.
O caso submetido à consulta trata de um trust cujos potenciais beneficiários são descendentes de acionista de uma sociedade brasileira, indiretamente detida por pessoa jurídica estrangeira, que por sua vez conferiu direitos econômicos (usufruto) à sociedade instituidora do trust, também estrangeira. O acesso ao patrimônio, conforme informado, condiciona-se à verificação de situação de “extrema necessidade” por parte dos beneficiários, conforme critérios detalhados no instrumento de constituição do trust.
A SC COSIT 75/25 apresenta a seguinte ementa:
TRUST IRREVOGÁVEL E DISCRICIONÁRIO INSTITUÍDO NO EXTERIOR. LEI Nº 14.754, DE 2023. REGIME DE TRANSPARÊNCIA FISCAL. APLICABILIDADE. DEFINIÇÃO DE INSTITUIDOR E BENEFICIÁRIO.
A lei 14.754, de 2023, define o instituidor como a pessoa física que, por meio da escritura do trust, destina bens e direitos de sua titularidade para formar o trust (art. 12, inciso II). Quando o trust for criado por meio do patrimônio de pessoas jurídicas residentes no exterior, será preciso investigar a cadeia patrimonial de modo a encontrar a pessoa física que em última instância seja a titular daquele patrimônio, ainda que detido diretamente por meio de pessoas jurídicas. Essa pessoa física será considerada o instituidor (settlor) do trust para fins da aplicação da lei 14.754, de 2023.
A lei 14.754, de 2023, define beneficiário como a pessoa indicada para receber do trustee os bens e direitos objeto do trust. A utilização do verbo “indicar” aponta não ser necessária a aquisição do direito ao patrimônio do trust para que uma pessoa seja considerada beneficiária desse trust. A existência de uma expectativa de direito ao patrimônio do trust é suficiente para a caracterização da condição de beneficiário.
Dispositivos legais: lei 10.406, de 10/1/02 (CC), arts. 121, 125; lei 14.754, de 12/12/23, arts. 10, 11 e 12.
Não obstante as condições suspensivas previstas na declaration do trust, o entendimento adotado pela COSIT foi no sentido de que os potenciais beneficiários já deveriam ser considerados, para fins fiscais, titulares dos ativos alocados ao trust. Ao interpretar os arts.10, 11 e 12 da lei 14.754/23, a Receita Federal entendeu que esses dispositivos, que criaram o regime de transparência para os trusts, seriam aplicáveis mesmo quando não há direito adquirido ao patrimônio ou à renda dele derivada. Nos termos da solução de consulta “a […] expectativa de direito ao patrimônio do trust é suficiente para a caracterização da condição de beneficiário”.
A posição adotada na SC COSIT 75/25 levanta preocupações relevantes. Não se trata apenas de uma antecipação do momento da tributação, mas da imposição de um ônus fiscal a sujeitos que podem jamais integrar a relação jurídico-tributária – ou, pior, que podem sequer ter ciência de sua condição de potencial beneficiário. Trata-se de tributação baseada na simples indicação nominal, no documento de constituição do trust, de beneficiário subordinado a condições futuras e incertas e que, por serem suspensivas, não poderiam presumir a existência de qualquer disponibilidade jurídica ou econômica, de patrimônio ou renda.
O posicionamento do fisco também é merecedor de críticas em relação ao que parece ter sido uma nova modalidade de desconsideração da personalidade jurídica, mesclada com o já conhecido conceito de UBO – ultimate beneficial owner: ao tratar de quem deveria ser qualificado como instituidor do trust (settlor), aspecto fundamental para aplicação da lei 14.754/23, a solução de consulta inova ao afirmar que, quando o trust for instituído por pessoa jurídica estrangeira, deve-se investigar a cadeia patrimonial “de modo a encontrar a pessoa física que em última instância seja a titular daquele patrimônio”.
Dentre os muitos aspectos controversos da SC COSIT 75/25, destacam-se:
Até a edição da SC COSIT 75/25, o principal posicionamento formal da Receita Federal sobre a tributação de trusts havia sido a SC 41/20, que tratou de valores recebidos por residente no Brasil a partir de um trust no exterior. Naquela ocasião, a Receita entendeu que os valores recebidos deveriam ser classificados como rendimentos tributáveis pelo IRPF, sujeitos ao recolhimento via carnê-leão e à declaração na DIRPF.
A crítica central a esse entendimento reside no fato de que, em muitos casos, os valores recebidos de um trust têm natureza sucessória – o que deveria afastar a incidência do IRPF e atrairia a competência dos estados para exigirem o ITCMD. Essa solução de consulta foi criticada, justamente, por desconsiderar as nuances estruturais e jurídicas da figura do trust e adotar uma solução genérica e desconectada da realidade dos instrumentos analisados.
De forma semelhante, a SC COSIT 75/25, ainda que amparada em novo marco legal, reproduz a mesma lógica de simplificação excessiva e – com o perdão do trocadilho – torna turva a transparência criada pela lei 14.754/23. Pauta-se, ao que tudo indica, em uma lacuna legislativa para atribuir a sujeito não previsto em lei o dever de pagar tributo e cumprir com obrigações acessórias.
A interpretação adotada pela Receita Federal desconsidera as particularidades do modelo de trust examinado – inclusive e principalmente a existência de cláusulas suspensivas – e aplica equivocadamente dispositivos legais que exigiriam uma análise contextualizada. Evidencia-se, assim, que, apesar da edição da lei 14.754/23, o tema da tributação dos trusts continua envolto em incertezas relevantes, com baixa aderência às especificidades das estruturas fiduciárias existentes em tantas jurisdições de common law.
FONTE: MIGALHAS – POR GABRIEL PARANAGUÁ E YURI JUNQUEIRA