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OS RISCOS DE UMA REFORMA APRESSADA DO CÓDIGO CIVIL

16 de junho de 2025

O ideal seria que o Projeto de Lei nº 4/2025 fosse retirado da pauta atual e rediscutido com mais tempo e responsabilidade.

O Código Civil, um dos pilares do ordenamento jurídico brasileiro, regula questões fundamentais para a vida em sociedade, como contratos, propriedade, relações familiares e sucessões. Justamente por isso, sua reforma e atualização devem ser tratadas com zelo, responsabilidade técnica e amplo diálogo com a sociedade. Na contramão dessa lógica, o Projeto de Lei (PL) nº 4/2025, atualmente em tramitação no Senado, trata o tema com açodamento, gerando preocupação entre juristas e acadêmicos por ser potencialmente desastroso. O projeto propõe uma reforma ampla e profunda do Código Civil, mas sem o necessário debate público e a cautela que o tema exige.

O texto foi produzido em um prazo recorde de 180 dias por uma comissão de juristas nomeada pelo Senado. Embora composta por profissionais de renome, tudo leva a crer que a comissão não teve tempo suficiente para alcançar a real dimensão e complexidade do Código Civil brasileiro. Trata-se, afinal, de alterar quase mil artigos que regem a vida dos brasileiros. Em países como Alemanha e França, reformas dessa natureza levaram décadas de discussão, com audiências públicas, revisões técnicas e ampla participação da sociedade civil. No Brasil, a pressa parece ter substituído o rigor técnico, e isso é alarmante para o futuro da estabilidade jurídica.

Além de alterar regras pontuais, a proposta redesenha fundamentos inteiros do direito civil. Uma das áreas mais impactadas é a da responsabilidade civil. O PL introduz novos conceitos, como “atividade de risco especial” e “situação de risco”, que não contam com definições precisas nem respaldo consolidado na doutrina jurídica nacional. Esses termos, ao invés de trazerem segurança, abrem margem para interpretações contraditórias nos tribunais, tornando as decisões judiciais mais instáveis e imprevisíveis. O risco aqui é claro: enfraquece-se a previsibilidade do direito e, com ela, a confiança dos cidadãos nas instituições judiciais. Empresas, profissionais liberais e cidadãos comuns podem se ver diante de situações em que não conseguem prever as consequências jurídicas de seus atos.

Outro ponto polêmico é a tentativa de estimular ações judiciais ao permitir que indivíduos que processarem empresas por danos coletivos recebam compensações financeiras, além da indenização de praxe. Embora o combate a práticas empresariais abusivas seja legítimo e necessário, essa proposta pode incentivar uma espécie de “judicialização mercantilizada”, motivada por ganhos financeiros. O resultado seria um aumento exponencial no número de ações, sobrecarregando ainda mais o Judiciário. O processo civil, que deveria servir à pacificação social, corre o risco de ser instrumentalizado como mecanismo de especulação.

As mudanças sugeridas também são controversas no campo do Direito de Família. Uma das propostas mais criticadas é a retirada do cônjuge da posição de herdeiro necessário quando existirem descendentes ou ascendentes. Na prática, isso significa que uma pessoa casada poderá ser privada da herança do parceiro ou parceira. Tal alteração ignora a realidade de muitas famílias brasileiras, em que o cônjuge desempenha papel decisivo na formação do patrimônio comum – ao fragilizar essa proteção legal, o projeto corre o risco de aprofundar desigualdades históricas, especialmente entre homens e mulheres, penalizando justamente os mais vulneráveis.

Não se pode ignorar que o projeto contempla propostas modernas e necessárias. O reconhecimento dos animais como seres sencientes, por exemplo, é um avanço compatível com o amadurecimento do debate ético, jurídico e ambiental no Brasil e no mundo. Também merece destaque a preocupação em valorizar as cotas empresariais na partilha de bens durante o divórcio, conferindo mais realismo à divisão patrimonial e protegendo o funcionamento das empresas familiares. No entanto, esses avanços pontuais não são suficientes para justificar a aprovação apressada de um texto que, em sua essência, carece de amadurecimento e de respaldo popular.

Reformular o Código Civil não é uma missão simples. Exige tempo, técnica e escuta social ampla e plural. O que está em jogo são regras que moldam o cotidiano de famílias, empresas e indivíduos, afetando desde relações afetivas até grandes transações econômicas. Aprovar um novo Código Civil sem garantir que a sociedade compreenda suas mudanças e possa opinar sobre elas é um gesto antidemocrático e tecnocrático. Além disso, um texto jurídico mal construído não corrige injustiças – apenas cria outras, com novos desajustes e lacunas legais.

O Código Civil deve refletir consensos sociais duradouros e valores constitucionais sólidos, não sendo fruto de vontades políticas pontuais ou de pressões circunstanciais. A lei civil é, por natureza, conservadora em sua estrutura: sua função não é responder a modismos ou a pressões conjunturais, mas oferecer estabilidade e segurança ao tecido social. Para isso, é essencial que a construção do novo texto legal seja coletiva, transparente e tecnicamente embasada.

O ideal seria que o PL 4/2025 fosse retirado da pauta atual e rediscutido com mais tempo e responsabilidade. Ampliar o debate público, realizar audiências em todos os Estados, ouvir movimentos sociais, advogados, professores, estudantes e cidadãos comuns é fundamental para que a reforma do Código Civil se transforme em uma construção verdadeiramente plural e representativa. Só assim será possível alcançar um texto legal justo, equilibrado e capaz de enfrentar os desafios do século 21 sem abrir mão da segurança jurídica, da justiça social e dos princípios constitucionais que estruturam nossa democracia.

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações.

FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR ALAN BOUSSO

 

 

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