Na seção dedicada à justiça tributária em seu Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário, Ricardo Lobo Torres ensinava que “a justiça tributária, sendo valor, é inteiramente abstrata, não se define nem ganha dicção constitucional, adquirindo graus de concretude pelos princípios e subprincípios, como vimos. É preciso, por conseguinte, surpreendê-la nos seus princípios maiores, como sejam a capacidade contributiva, o custo-benefício, a distribuição de rendas e a solidariedade de grupo” [1].
Ignorando o alerta do saudoso professor, com a Emenda Constitucional nº 132/2023 (EC 132) a justiça tributária ganhou “dicção constitucional” ao ser explicitamente incluída no novo catálogo de princípios previsto no § 3º do artigo 145.
Temos insistido que não nos parece ter havido reflexões mais profundas sobre a inclusão explícita no texto constitucional dos princípios listados no aludido § 3º, tendo sido os debates sobre o tema eclipsados pelas inúmeras controvérsias referentes ao IBS e à CBS e, até mesmo, pelo Imposto Seletivo.
A própria redação do § 3º do artigo 145 da Constituição, ao prever que o Sistema Tributário Nacional deve observar o princípio da justiça tributária, traz uma previsão que, nesses termos, transita entre a ingenuidade e a ineficácia. Da mesma forma que a declaração do princípio da simplicidade não torna o Sistema Tributário Nacional simples, a previsão do princípio da justiça tributária não o torna justo.
Assim sendo, a utilização do verbo “dever” mostra-se incompatível com a própria natureza principiológica das normas ali previstas, tendendo a gerar pretensões que não têm como ser atendidas por um dispositivo como o § 3º do artigo 145 da Constituição.
Nada obstante, fato é que agora temos a previsão explícita do princípio da justiça tributária, o qual deve ser observado pelo Sistema Tributário Nacional. Resta então, a questão: o que seria um sistema tributário justo?
As vertentes da justiça tributária
Não nos parece que a justiça tributária seja um princípio unidimensional e unívoco, comportando ele mais de uma acepção.
Em primeiro lugar, acreditamos que a justiça do sistema tributário está diretamente relacionada com a distribuição da carga tributária entre os contribuintes. Como defendia Ricardo Lobo Torres, “a justiça fiscal, especial dimensão da justiça política, é a nosso ver, a que oferece melhor instrumental para a redistribuição de rendas, com a adjudicação de parcelas da riqueza nacional a indivíduos concretos” [2].
Nessa acepção, tendo em conta a premissa de que a carga tributária total é uma função das decisões da sociedade por meio de sua representação política, a justiça tributária se manifestaria pelo modo como o peso dos tributos seria distribuído entre os contribuintes.
Entretanto, muitas vezes, quando se pensa em justiça tributária, o foco está não necessariamente na distribuição da carga tributária, mas no peso dos tributos sobre os contribuintes em si. Contudo, por mais que seja inegável que a carga tributária pode tornar um sistema injusto, caso a exigência fiscal a aproxime do confisco, como regra, a determinação da carga tributária é uma função do papel atribuído ao Estado em uma determinada sociedade, não sendo intrínseca ao sistema tributário. Com isso se quer dizer que não é a tributação que dita as necessidades orçamentárias do Estado, são as necessidades orçamentárias do Estado que determinam o quanto deve ser arrecadado de tributos.
Esta segunda acepção da justiça tributária, focada na carga tributária em si mesma, vai nos levar a outra, relacionada ao caráter instrumental da arrecadação de tributos, e a necessária conexão entre elas e a realização de finalidades constitucionais.
Em um importante artigo, Marco Aurélio Greco chamou a atenção para o fato de que arrecadar tributos não é um ato de exercício de poder, mas sim uma função pública. Dessa transição, do poder para a função, Greco extrai cinco consequências práticas:
O reconhecimento de que a arrecadação tributária não é um mero exercício de poder, não é só a manifestação de uma competência prevista na Constituição Federal, vai vincular a legitimidade da tributação à realização de certas políticas públicas constitucionalmente relevantes e criar uma esfera jurídica para o seu controle, inclusive pelo Poder Judiciário.
Há, ainda, uma outra vertente da justiça tributária referente à limitação da incidência de tributos pela Constituição e pelas leis infraconstitucionais.
Como vimos defendendo, a tributação é um fenômeno ambivalente. Ela é essencial para o financiamento de direitos fundamentais, convertendo-se em um dever de cidadania, e, ao mesmo tempo, se exercida com excesso ou desvio de poder, pode agredir direitos fundamentais [4].
Dessa forma, reconhecer que o dever de pagar tributos tem base constitucional e que ser cidadão é ser contribuinte, nos limites da capacidade contributiva de cada um, não permite ao Estado a exigência de parcelas do patrimônio privado fora dos limites estabelecidos pela própria Constituição e das situações previstas em lei como tributáveis.
Um sistema tributário justo requer que os contribuintes não sejam exigidos a recolher tributos para além do que é autorizado pelo ordenamento jurídico.
Essa vertente da segurança jurídica tem uma dimensão processual, uma vez que a garantia de que o Estado não exercerá seu poder para além do que lhe é autorizado pela Constituição e pela legislação infraconstitucional requer a existência de mecanismos processuais adequados para que o contribuinte possa repelir, de forma eficaz e em tempo razoável, exigências tributárias inconstitucionais, ilegais ou ilegítimas.
Apresentados esses comentários, devo voltar a atenção para o princípio da justiça tributária previsto no § 3º do artigo 145 da Constituição.
O princípio da justiça tributária e a EC 132
Das várias dimensões possíveis da justiça tributária que examinamos anteriormente, parece-nos que a que foi mais prestigiada pela EC 132 é a demanda de que a carga financeira da arrecadação tributária seja distribuída de forma justa entre os cidadãos.
Uma das grandes críticas feitas ao Sistema Tributário Nacional sempre foi a sua regressividade, decorrente da enorme dependência dos tributos sobre o consumo. Nesse aspecto, a Emenda Constitucional nº 132 é ambivalente. É um “retrocesso progressista”.
É retrocesso porque manteve a centralidade da tributação do consumo no Sistema Tributário Nacional. Ou seja, a tributação no Brasil seguirá em larga medida regressiva. Entretanto, foram inseridos no texto constitucional diversos dispositivos que vão na linha de uma melhor justiça tributária – da perspectiva de distribuição da carga tributária segundo a capacidade contributiva.
Por exemplo, o novo § 4º do artigo 145 da Constituição Federal prevê que “as alterações na legislação tributária buscarão atenuar efeitos regressivos”. Mesmo que se trate de uma norma programática, ela redireciona o Sistema Tributário Nacional, criando uma espécie de “princípio da não regressividade”.
Ainda neste campo da justiça tributária, a Emenda Constitucional nº 132 incluiu uma regra explícita de progressividade do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (artigo 155, § 1º, VI), e superou um grande equívoco jurisprudencial que era a posição do Supremo Tribunal Federal de não incidência do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores em veículos aquáticos e aéreos (artigo 155, § 6º III).
A justiça tributária sob a vertente da incidência segundo a capacidade contributiva também ilumina o tão falado cash back. Segundo o artigo 156-A, § 5º, VIII da Constituição, lei complementar disporá sobre “as hipóteses de devolução do imposto [IBS] a pessoas físicas, inclusive os limites e os beneficiários, com o objetivo de reduzir as desigualdades de renda”. E o § 13 deste mesmo artigo torna obrigatória a devolução “nas operações de fornecimento de energia elétrica e de gás liquefeito de petróleo ao consumidor de baixa renda, podendo a lei complementar determinar que seja calculada e concedida no momento da cobrança da operação”. O cash back também está previsto para a CBS (artigo 195, § 18, da Constituição).
Vale a pena destacar que esses dispositivos fizeram explícita menção à utilização do cash back como instrumento para a superação de desigualdades de renda – embora não tenham abrangido outros tipos de desigualdade, como chegou a ser previsto numa das versões da PEC 45, que fez referência à redução de desigualdades de renda, gênero e raça.
Os próprios IBS/CBS foram ajustados para atenuar a sua regressividade em relação às pessoas de menor renda. Por mais que sejam grandes os debates acerca da eficácia de gastos tributários com tais finalidades, boa parte dos itens incluídos no artigo 9º da EC 132 o foram para evitar a oneração de produtos e serviços essenciais.
Outra notável modificação inserida na Constituição Federal pela EC 132 foi o § 11 do seu artigo 9º. Com efeito, este artigo 9º traz diversos regimes diferenciados de tributação, os quais, segundo o seu § 10, “serão submetidos a avaliação quinquenal de custo-benefício, podendo a lei fixar regime de transição para a alíquota padrão, não observado o disposto no § 2º, garantidos os respectivos ajustes nas alíquotas de referência”.
O § 11 em comento traz dispositivo que seria impensável anos atrás, determinando que “a avaliação de que trata o § 10 deverá examinar o impacto da legislação dos tributos a que se refere o caput deste artigo na promoção da igualdade entre homens e mulheres”.
Considerando que as mulheres, notadamente as mulheres negras [5], são a base da pirâmide social, qualquer medida que supere desigualdades de gênero terá impactos sobre a superação de desigualdades sociais de forma ampla e abrangente.
Por fim, mas não menos importante, o artigo 18, I, da EC 132 previu que o Poder Executivo deve enviar ao Congresso Nacional, “em até 90 (noventa) dias após a promulgação desta Emenda Constitucional, projeto de lei que reforme a tributação da renda, acompanhado das correspondentes estimativas e estudos de impactos orçamentários e financeiros”.
O parágrafo único deste artigo prevê que “eventual arrecadação adicional da União decorrente da aprovação da medida de que trata o inciso I do caput deste artigo poderá ser considerada como fonte de compensação para redução da tributação incidente sobre a folha de pagamentos e sobre o consumo de bens e serviços”.
Esse parágrafo está alinhado com o previsto no § 4º do artigo 145. Trata-se de medida em direção à redução da regressividade do Sistema Tributário Nacional, que cogita de uma troca – positiva – de arrecadação – uma tributação mais justa da renda em vez da tributação do consumo e da folha de salários.
Por mais que o artigo 18, I, da EC 132 não tenha sido observado, nota-se, de plano, uma clara conexão entre o princípio da justiça tributária em sua dimensão de correta distribuição da carga tributária e a proposta de alteração na legislação do Imposto de Renda das Pessoas Físicas objeto do Projeto de Lei nº 1.087/2025 que propõe a criação de um Imposto de Renda mínimo para pessoas físicas de alta renda. (Escrevemos texto sobre este tema em uma coluna anterior, aqui).
É perceptível que, dentro de sua ambivalência, a EC 132 buscou aumentar a justiça do Sistema Tributário Nacional, incluindo no texto constitucional uma série de dispositivos cuja finalidade é tornar a distribuição da carga tributária mais justa, no sentido de redução da regressividade e das desigualdades, e de aumento da progressividade.
É importante ressaltar que o fato de identificarmos uma maior relevância dada pela EC 132 à justiça distributiva não transforma a justiça tributária em um princípio unidimensional. Inclusive, outras vertentes deste princípio também aparecem na referida emenda constitucional, materializada em uma série de regras cujo fim é a manutenção da carga vinculada à tributação sobre o consumo.
Nada obstante, ainda assim cremos ser possível afirmar que há uma consolidação da relevância axiológica da justiça distributiva com a EC 132, reforçando uma transição em nossa tradição tributária que se iniciou com a promulgação da Constituição Federal de 1988 (sobre o tema da evolução histórica da tradição tributária brasileira, ver nosso texto, aqui), o que certamente terá impactos sobre a interpretação dos textos normativos tributários (sobre este tema, ver nosso texto, aqui).
Conclusão
É uma pena que tenhamos dedicado tão limitada atenção ao tema dos princípios previstos no § 3º do artigo 145 da Constituição. Passarão anos até que a doutrina e os tribunais consigam densificar o conteúdo dos princípios da simplicidade, da cooperação, da transparência, da justiça tributária e da defesa do meio ambiente, que agora devem ser observados pelo Sistema Tributário Nacional. Olhando apenas para a justiça tributária, parece-nos que a interpretação sistemática da própria EC 132 nos ajuda a entender qual de suas dimensões ganhou maior relevância pós-reforma tributária. Segundo vemos, ficou ainda mais clara a vinculação entre tributação e superação de desigualdades, sendo este um vetor que deverá orientar todo o Sistema Tributário Nacional.
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[1] TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário: Valores e Princípios Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. v. II. p. 114.
[2] TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário: Valores e Princípios Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. v. II. p. 113-114.
[3] GRECO, Marco Aurélio. Do Poder à Função Tributária. In: FERRAZ, Roberto (Coord.). Princípios e Limites da Tributação 2. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 175-176.
[4] Ver: TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário: Os Direitos Humanos e a Tributação, Imunidades e Isonomia. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. v. III. p. 1-6.
[5] Sobre o tema, ver: BORGES, Lana. Tributação e Gênero: Políticas públicas de extrafiscalidade e a luta pela igualdade. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2023. p. 92.
FONTE: CONSULTOR JURÍDICO – POR SERGIO ANDRÉ ROCHA