A reforma tributária do consumo promovida por meio da edição da Emenda Constitucional 132/2023 previu, em substituição ao ICMS e ao ISSQN, a figura do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), cuja competência para instituição de sua regra-matriz é da União, que já a exerceu por meio da publicação da Lei Complementar 214/2025, restando, a estados, Distrito Federal e municípios, o estabelecimento das alíquotas para as operações destinadas a seus territórios, sendo certo que se não o fizerem, as operações em que figurarem como sujeitos ativos submeter-se-ão à alíquota de referência prevista em resolução do Senado.
Não é novidade, ainda, que a Emenda Constitucional não se preocupou com questões de natureza processual [1], de modo que a peculiaridade do novel imposto, instituído por lei complementar nacional, com arrecadação de competência do Comitê Gestor, mas fiscalização, lançamento e cobrança a cargo, respectivamente, dos Fiscos e das Procuradorias dos estados, Distrito Federal e municípios [2], tem exigido grande esforço da doutrina especializada em tentar prever e apresentar propostas de solução para as intrincadas questões processuais que surgem a partir da previsão dessa inovadora figura tributária [3].
Uma delas, que é objeto de análise neste artigo, atine à definição da competência para processar e julgar as execuções fiscais relacionadas aos créditos tributários devidamente constituídos, inscritos em dívida ativa e inadimplidos, destacando-se, para tanto, a situação específica das operações interestaduais e intermunicipais com bens materiais.
Tal qual se dá atualmente com o diferencial de alíquotas do ICMS, no IBS, o crédito tributário é devido ao Distrito Federal/estado/município de destino da operação, diretriz adotada constitucionalmente com o intuito de prevenir a famigerada guerra fiscal, que se tornou corriqueira entre os Estados no âmbito do ICMS e entre municípios quanto ao ISS, como meio de atração de investimentos.
CPC/2015 e o entendimento do STF
Tomando isso como premissa material, necessário visitar a legislação processual, a qual, sobre o tema, talvez no afã de facilitar o exercício do direito de defesa por parte do executado, no Código de Processo Civil de 2015, restringindo o que era previsto no Código anterior, trouxe a expressa previsão de que “a execução fiscal será proposta no foro de domicílio do réu, no de sua residência ou no do lugar onde for encontrado”.
Ocorre que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade 5.737 e 5.492, antes de promulgada a Emenda Constitucional 132/2023, uma vez que a ata de julgamento do mérito foi publicada em 4/5/2023 [4], valeu-se da técnica da interpretação conforme a Constituição para restringir a aplicação do artigo 46, § 5º [5], do CPC, aos limites do território de cada ente subnacional ou ao local de ocorrência do fato gerador [6].
Desse modo, o critério para definição da competência para o processamento da execução fiscal que tem por objeto as cobranças de IBS em operações interestaduais com bens materiais não será o domicílio ou a residência do réu, uma vez que este se confundirá com a figura do contribuinte e será, em regra, o fornecedor, que nesse caso terá como domicílio estado diverso daquele que titulariza o crédito tributário [7].
É o que se depreende da leitura do inciso I do artigo 21 da Lei Complementar 214/2025, onde consta que é contribuinte o fornecedor que realizar operações no desenvolvimento de atividade econômica, de modo habitual ou em volume que caracterize atividade econômica, ou, ainda, de forma habitual, mesmo que a profissão não seja regulamentada [8].
Sobra, então, para identificação do ente jurisdicional competente para processar a execução fiscal cogitar acerca do local da ocorrência do fato gerador, e isso exige que se verifique, na lei instituidora do IBS, as normas que versam sobre o aspecto espacial de sua hipótese de incidência.
A regra matriz encontra-se positivada na Lei Complementar 214/2025, que, na Seção IV, ao tratar “do local da operação”, estabelece, no artigo 11, inciso I, que ela ocorre, nas operações com bens móveis materiais, no lugar em que estes forem entregues ou disponibilizados ao destinatário, explicitando, ainda, que este local, nas operações não presenciais, será o destino final indicado pelo adquirente [9].
Dessarte, o fornecedor inadimplente domiciliado em Estado diverso daquele em que entregue ou disponibilizado o bem material será demandado em comarca diversa daquela de seu domicílio, precisamente onde ocorrido o fato gerador do IBS, de modo que a expropriação forçada, bem como a decisão final sobre a legitimidade do crédito, caso opostos embargos à execução fiscal ou exceção de pré-executividade, será da alçada exclusiva da Justiça do estado titular da sujeição ativa tributária.
De outra senda, considerando a ratio decidendi do precedente posto pelo julgamento das ADIs 5.737 e 5.492 [10], que foi garantir a prerrogativa constitucional de auto-organização dos estados e do Distrito Federal, garantindo ao Poder Judiciário estadual a atuação nas questões de direito afetas aos entes públicos subnacionais, assim como o fato de que na autonomia municipal não se inclui a jurisdição como poder, nas operações intermunicipais dentro de um mesmo estado, o critério para definição da competência será o domicílio ou residência do contribuinte, no caso o fornecedor.
Enfim, com o IBS, caso o tema não seja revisitado pelo Supremo Tribunal Federal, nas operações interestaduais, a competência para o processamento da execução fiscal será definida pelo local em que ocorrer o fato gerador, já nos casos em que a operação for intermunicipal dentro de um mesmo estado, será competente o juízo em que domiciliado o fornecedor, ainda que diversa daquela em que ocorrido o fato gerador.
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[1] A única norma de cunho processual foi a previsão de competência do STJ para processar e julgar “os conflitos entre entes federativos, ou entre estes e o Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços, relacionados aos tributos previstos nos arts. 156-A e 195, V;”, posta na alínea “j” do inciso I do art. 105 da Constituição Federal.
A respeito dessa competência sugerimos a leitura do seguinte artigo publicado também nesta Coluna:
https://www.conjur.com.br/2024-mar-03/conflituosidade-no-ibs-e-a-competencia-originaria-do-stj-na-ec-132-2023/
[2] É esse o mandamento constitucional, conforme se verifica no art. 156-B do seu texto, abaixo transcrito, que foi implementado conforme previsão dos artigos 324, 330 da Lei Complementar 214/2025.
Art. 156-B. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios exercerão de forma integrada, exclusivamente por meio do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços, nos termos e limites estabelecidos nesta Constituição e em lei complementar, as seguintes competências administrativas relativas ao imposto de que trata o art. 156-A:
I – editar regulamento único e uniformizar a interpretação e a aplicação da legislação do imposto;
II – arrecadar o imposto, efetuar as compensações e distribuir o produto da arrecadação entre Estados, Distrito Federal e Municípios;
(…)
§ 2º Na forma da lei complementar:
(…)
V – a fiscalização, o lançamento, a cobrança, a representação administrativa e a representação judicial relativos ao imposto serão realizados, no âmbito de suas respectivas competências, pelas administrações tributárias e procuradorias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que poderão definir hipóteses de delegação ou de compartilhamento de competências, cabendo ao Comitê Gestor a coordenação dessas atividades administrativas com vistas à integração entre os entes federativos;
[3] Sobre esse ponto sugerimos a leitura dos seguintes artigos publicados nesta coluna:
https://www.conjur.com.br/2025-abr-06/cbs-e-ibs-sujeicao-passiva-x-parte-legitima-no-processo-tributario/
https://www.conjur.com.br/2023-nov-05/processo-tributario-reforma-tributacao-consumo-contencioso-tributario
https://www.conjur.com.br/2024-mai-19/por-um-contencioso-administrativo-tributario-unificado-e-descentralizado/
4] Disponível em <https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5217188>
[5] Art. 46. A ação fundada em direito pessoal ou em direito real sobre bens móveis será proposta, em regra, no foro de domicílio do réu.
§ 5º A execução fiscal será proposta no foro de domicílio do réu, no de sua residência ou no do lugar onde for encontrado.
[6] Naquilo que importa a este estudo, foi essa a conclusão do STF, constante no item 11 da Ementa do julgamento das ADIs 5.737 e 5.492:
“11. Pedido julgado parcialmente procedente para: (i) atribuir interpretação conforme à Constituição ao art. 46, § 5º, do CPC, para restringir sua aplicação aos limites do território de cada ente subnacional ou ao local de ocorrência do fato gerador; (ii) conferir interpretação conforme também ao art. 52, parágrafo único, do CPC, para restringir a competência do foro de domicílio do autor às comarcas inseridas nos limites territoriais do estado-membro ou do Distrito Federal que figure como réu…”
[7] Neste sentido caminhou o posicionamento de Camila Campos Vergueiro, em artigo publicado nesta mesma coluna: “Na CBS, o sujeito ativo, é a União (artigo 195, V, CF/1988 já transcrito em nota de rodapé), e no IBS, os estados, municípios e Distrito Federal, diante do que prescreve o artigo 156-B, §2º, inciso V da Constituição de 1988.”, acessível no seguinte link: < https://www.conjur.com.br/2025-abr-06/cbs-e-ibs-sujeicao-passiva-x-parte-legitima-no-processo-tributario/>
[8] Art. 21. É contribuinte do IBS e da CBS:
I – o fornecedor que realizar operações:
a) no desenvolvimento de atividade econômica;
b) de modo habitual ou em volume que caracterize atividade econômica; ou
c) de forma profissional, ainda que a profissão não seja regulamentada;
[9] Art. 11. Considera-se local da operação com:
I – bem móvel material, o local da entrega ou disponibilização do bem ao destinatário;
(…)
§1º Para fins do disposto no inciso I do caput deste artigo:
I – em operação realizada de forma não presencial, assim entendida aquela em que a entrega ou disponibilização não ocorra na presença do adquirente ou destinatário no estabelecimento do fornecedor, considera-se local da entrega ou disponibilização do bem ao destinatário o destino final indicado pelo adquirente:
a) ao fornecedor, caso o serviço de transporte seja de responsabilidade do fornecedor; ou
b) ao terceiro responsável pelo transporte, caso o serviço de transporte seja de responsabilidade do adquirente;
[10] Do voto do Min. Barroso, designado redator do Acórdão, destaca-se os seguintes trechos que bem elucidam a ratio decidendi do precedente: “Não se pode, em tal contexto, desconsiderar a ideia de que a Justiça estadual é um componente da auto-organização do Estado-membro (CF/1988, art. 25, caput, e art. 125). A autonomia federativa resta violada ao se permitir que temas como a validade de atos normativos estaduais ou distritais, o provimento de cargos por concurso público, as relações dos respectivos entes subnacionais com seus servidores, ativos ou inativos, e outras pretensões ligadas a fatos locais sejam decididos, de forma tendencialmente definitiva, por magistrado vinculados a outra unidade federativa.”
FONTE: CONSULTOR JURÍDICO – POR LUIS CLAUDIO FERREIRA CANTANHÊDE