Seria importante que nossos tribunais superiores alinhassem as suas posições para dirimir esse imbróglio, adotando, como esperam os contribuintes, o critério da essencialidade.
Um dos temas mais controvertidos em matéria tributária, desde a promulgação da Constituição de 1988, é a delimitação do alcance do direito de crédito do ICMS sobre a aquisição dos chamados “materiais intermediários”. A dificuldade sempre foi a de distingui-los dos bens de mero “uso e consumo”, cuja própria Lei Complementar nº 87/96 veda o creditamento.
Ao longo do tempo, muito se debateu sobre os critérios para que determinado material fosse classificado como “intermediário”. Os que prevaleceram na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) – e que, durante muito tempo, foram replicados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) – podem ser resumidos da seguinte forma: (i) o material deve ser integrado fisicamente ao produto final e (ii) deve ocorrer o seu consumo imediato e integral no curso processo produtivo. Caso contrário, teria natureza de “uso e consumo”.
Esse posicionamento de caráter restritivo adotado historicamente pelo STF deixou de ser seguido pelo STJ, cujos julgados mais recentes vão em linha diametralmente oposta, no sentido de que basta a aplicação do bem de forma essencial na ativida de fim do contribuinte (chamado de “critério da essencialidade”) para que fique garantido, na condição de produto intermediário, o direito de crédito de ICMS (conforme decidido no EAREsp 1.775.781).
Ou seja, o STJ passou a adotar um racional completamente diferente, que parte de outra premissa (mais simples e adequada ao princípio da não cumulatividade), em que não importa se o bem é consumido imediatamente ou não ou se tem algum contato físico com o produto final. Isso é indiferente. O foco está na essencialidade dele para a consecução da atividade-fim do contribuinte. Se assim o for, será legítimo o direito de crédito.
Tal entendimento vem se consolidando na 1ª Seção do STJ desde o julgamento do REsp 1.221.170 em 2018, que tratava de tema semelhante, porém sob a ótica do Programa de Integração Social (PIS) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins).
De todo modo, o fato é que há, atualmente, uma notória divergência entre os critérios adotados pelas nossas Cortes Superiores para se definir se determinado bem gera ou não direito de crédito de ICMS.
Os contribuintes anseiam que o STF, diante da atual jurisprudência do STJ, reveja o seu posicionamento histórico para fazer prevalecer o critério da essencialidade. E tal evento pode vir a ocorrer no âmbito do RE 1.424.015/SC, proveniente do julgamento do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) nº 10 pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), em que se afirmou, na linha restritiva adotada pelo STF, que o “enquadramento do bem como material intermediário pressupõe o seu consumo imediato e integral no processo produtivo e sua integração física ao produto final”. O caso chegou à Suprema Corte em meados de 2024 e o relator é o ministro Nunes Marques.
Espera-se, diante dessas circunstâncias, que o Supremo afete o RE 1.424.015/SC à sistemática de repercussão geral e, assim, dê uma solução definitiva para o tema (a afetação ainda não ocorreu, entretanto, pode vir a ser decidida a qualquer momento pela Suprema Corte).
Há, no entanto, um fato novo que pode vir a gerar confusão conceitual no critério da essencialidade que vem sendo muito bem construído, qual seja: a Comissão Gestora de Precedentes do próprio STJ indicou a Controvérsia nº 711 como tema passível de julgamento pela sistemática dos recursos repetitivos. Ocorre que o objeto da controvérsia foi descrito da seguinte forma: “Possibilidade de obtenção de crédito de ICMS, na sistemática da Lei Complementar nº 87/1996, relativo aos insumos definidos como de uso ou de consumo próprio do estabelecimento, utilizados no processo de produção, mas que não integram o produto final ou o seu consumo não seja de forma imediata e integral no processo produtivo”.
A delimitação dos contornos da Controvérsia nº 711, como visto, não foi a melhor, considerando o atual estágio da jurisprudência. Afinal, o STJ pode acabar chegando à conclusão de que devem ser classificados como bens de “uso e consumo” os diversos itens que são utilizados diretamente no processo produtivo, mas que não integram o produto final e nem são consumidos de forma imediata e integral. Essa interpretação irá colidir com o racional inerente ao mencionado critério da essencialidade, que vem prevalecendo na Corte para se reconhecer o direito de crédito de ICMS sobre produtos intermediários.
Existem inúmeras ações judiciais em curso e autos de infração pendentes de julgamento sobre esse tema que, em respeito ao princípio da não cumulatividade, deveria estar pacificado há tempos. Afinal, todos os bens aplicados de forma direta na atividade-fim do contribuinte (como vem definindo o STJ), por representarem custo da produção ou da prestação de serviços, devem gerar direito de crédito, sob pena de se ter uma inevitável incidência “em cascata” do imposto. Isso quer dizer que o imposto incidirá sobre ele mesmo dentro da cadeia de circulação, o que gerará diversos impactos econômicos negativos.
Seria importante que nossos tribunais superiores alinhassem as suas posições para dirimir esse imbróglio, adotando, como esperam os contribuintes, o critério da essencialidade para se dar maior efetividade ao princípio da não cumulatividade, que é um dos pilares de nossa reforma tributária.
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FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR MARCOS CORREIA PIQUEIRA MAIA