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PEÇAS DE REPOSIÇÃO E A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR

26 de março de 2025

Decisão do STJ parece desconsiderar a distinção entre vício do produto e vício do serviço.

A recente decisão da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que caracterizou a falta de peças de reposição para veículos como vício do produto, gerou repercussão no meio jurídico e no mercado de consumo (REsp 2.149.058 – SP).

O caso em questão trata da situação em que um consumidor adquiriu veículo zero quilômetro da marca Hyundai, junto a Concessionária autorizada Caoa, porém teve o bem furtado e, posteriormente localizado com uma avaria no módulo de ignição, impossibilitando o acionamento do automóvel. Diante disso, foi necessário o reparo e substituição da peça, ensejando a imobilização do bem por mais de 70 dias, devido à indisponibilidade de peças.

O STJ, em que pese a necessidade de reparo não ter decorrido de vício/defeito de fabricação do veículo, mas em decorrência de danos ocasionados pelo criminoso que efetuou o furto, entendeu que a ausência de peças de reposição configura vício do produto, aplicando as disposições do Código de Defesa do Consumidor (CDC) para determinar a devolução do valor pago pelo veículo. Embora a decisão vise a proteção ao consumidor, é necessário refletir sobre seus impactos e possíveis distorções dos institutos constantes do CDC.

O relator do acórdão, ministro Moura Ribeiro, fundamentou sua decisão no art. 18 do CDC, que impõe ao fornecedor a responsabilidade por vícios de qualidade que tornem o produto impróprio ou inadequado ao uso. Segundo seu entendimento, um veículo zero quilômetro deve ser passível de reparo imediato em caso de avaria, e a falta de peças inviabiliza esse propósito.

Contudo, temos que o posicionamento do STJ se equivoca ao tratar o caso como ocorrência de vício/defeito, merecendo nova análise.

Em primeiro lugar, a falta de peças pode decorrer de fatores externos às  montadoras, como crises na cadeia de suprimentos, problemas logísticos ou eventos globais, como a pandemia de Covid-19 (situação dos autos), que afetou a produção e distribuição de componentes automotivos. Caracterizar essa situação como vício do produto impõe um ônus excessivo às empresas.

Como se não bastasse, a decisão simplesmente ignora o fato de que o problema reclamado pelo consumidor não decorreu de vício/defeito de fabricação, mas de um ato criminoso, sem relação com a montadora ou o processo produtivo, de modo que inexiste prazo de reparo legal previsto pelo CDC, em casos como esse ou de sinistro.

Além disso, a decisão parece desconsiderar a distinção entre vício do produto e vício do serviço. Enquanto o primeiro refere-se a problemas intrínsecos ao bem, o segundo está relacionado à prestação de serviços, como a assistência técnica. No caso em questão, a demora na reposição da peça decorre da falta de componentes, mais associada à qualidade do serviço pós-venda do que a um vício do produto em si.

A aplicação do art. 18 do CDC, que prevê a substituição do produto ou a restituição do valor pago, é excessiva nesses casos, pois o produto foi entregue em perfeitas condições de uso e funcionamento, sem vício/defeito, sendo certo que o reparo não decorreu de qualquer falha na produção, mas por conduta de terceiro, o que por si só, afasta a responsabilidade da montadora.

Além disso, no caso julgado pelo STJ, a decisão poderia ter considerado a possibilidade de reparo do veículo, que obstaria a rescisão contratual. Decisões de outros tribunais demonstram interpretações mais equilibradas.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, por exemplo, acolheu o pedido da montadora Volvo no sentido da impossibilidade de rescisão contratual quando o veículo foi integralmente reparado (AC 50036595720168130672).

Do mesmo modo, prazos justificados e acordados com o consumidor, somados ao efetivo reparo, poderiam evitar medidas drásticas, como a devolução do valor pago.

Tribunais de outros Estados, como São Paulo (Apelação Cível 1058168- 66.2023.8.26.0100), Paraíba (AC 00019021420148152003) e Rio de Janeiro (APL 03774303520098190001), que envolviam veículos das montadoras BMW e Volkswagen, já decidiram no sentido de evitar rescisão contratual em casos nessas condições.

Essa abordagem equilibra a proteção ao consumidor com a realidade operacional das empresas, evitando soluções que sobrecarreguem o Judiciário e criem insegurança jurídica para fornecedores.

Garantir que consumidores não sejam prejudicados por falhas no pós-venda é essencial, mas isso deve ser feito com critério e sem desconsiderar as dificuldades logísticas e produtivas enfrentadas pelas empresas.

Nesse contexto, é fundamental diferenciar vício do produto e falha no serviço pós-venda e deveria o STJ ter levado em consideração, além dessa diferenciação, que a questão estava afetada por fatores externos.

A falta de peças pode ser um problema, mas sua caracterização automática como vício do produto é inadequada. Em vez disso, a extensão de prazo (art. 18, § 2º do CDC), pode ser uma solução mais justa, permitindo que as empresas corrijam falhas sem penalidades extremas, como a restituição do valor pago.

O desafio está em aplicar o CDC de forma ponderada, respeitando as particularidades de cada caso e promovendo soluções equilibradas entre consumidores e fornecedores.

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações.

FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR BRUNO MONFARDINI VUOLO

 

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