Levantamento mostra decisões favoráveis a sócios em São Paulo, Paraná e Santa Catarina.
A Justiça estadual tem livrado os contribuintes da cobrança de ITCMD sobre a distribuição desproporcional de lucro. Levantamento realizado por meio da plataforma Jusbrasil revela que os Tribunais de Justiça de São Paulo, Paraná e Santa Catarina já proferiram, até agora, ao menos nove decisões sobre o assunto e só duas delas foram desfavoráveis aos titulares dos dividendos.
Nos debates sobre a reforma tributária, na Câmara dos Deputados, parlamentares tentaram inserir dispositivo favorável à cobrança no Projeto de Lei (PL) nº 108, que padronizará a incidência do imposto sobre heranças e doações. Porém, sem sucesso. O PL ainda será analisado pelo Senado.
Mesmo sem lei complementar federal para permitir a cobrança sobre a distribuição desproporcional de lucro, alguns Estados, como São Paulo, aplicam autuações por considerar esse tipo de operação como uma espécie de “doação disfarçada”. Para a Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (PGE-SP), nos termos da Lei nº 10.705, de 2000, a medida, sem fundamento contratual, configura fato gerador do ITCMD.
Além disso, destaca a PGE-SP em nota ao Valor, “conforme o artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, a autoridade administrativa pode desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo”. Segundo o órgão, há inclusive jurisprudência nesse sentido, da primeira e segunda instâncias da Justiça paulista (processos nº 1089011-58.2023.8.26.0053 e nº 1087688-18.2023.8.26.0053).
O advogado Caio Malpighi, que fez o levantamento na Jusbrasil, defende que o artigo 1.007 do Código Civil autoriza a distribuição desproporcional de lucro. O dispositivo estabelece que o sócio participa dos lucros e das perdas, na proporção das respectivas cotas, salvo disposição em contrário. “Por isso, para evitar impactos tributários, orientamos haver a previsão da possibilidade de distribuição desproporcional no contrato social”, diz.
Porém, para Malpighi, mesmo a ausência de estipulação contratual não justifica a incidência do ITCMD. “Porque não é doação, é lucro decorrente de atividade empresarial”, afirma. Ele cita, como exemplo, o caso de um sócio que levou clientela para a empresa e os demais sócios deliberaram que ele merece ganhar mais por causa disso. “Existe, nesse caso, uma justificativa para a desproporcionalidade. Essa deliberação justificada pode ser registrada em ata”, diz.
Da jurisprudência, o tributarista destaca uma recente decisão da 5ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) favorável aos contribuintes. No caso, os quatro sócios de uma empresa metalúrgica familiar receberam lucros desproporcionais ao número de cotas que possuem, resultado de uma operação não onerosa realizada pelo sócio majoritário.
“Trata-se de ato atinente à liberdade negocial dos sócios de distribuírem os lucros como entenderem pertinente, desde que seguindo as previsões contratuais, de forma que o valor não chega a integrar o patrimônio do sócio majoritário para, após, ser transferido ao patrimônio dos demais – uma vez verificado o lucro, ele é repassado diretamente aos sócios conforme combinado”, afirma em seu voto o relator, Alexandre Morais da Rosa (processo nº 5005960-13.2022.8.24.0008).
Por meio de nota, a Procuradoria Geral do Estado de Santa Catarina informa que foi cientificada da decisão e que é o primeiro processo a respeito da matéria. “Portanto, os procuradores responsáveis estão estudando o tema para oferecer a defesa do Estado”, diz a nota.
Também são recentes duas decisões desfavoráveis aos contribuintes da 4ª e da 6ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). “Ainda que a legislação permita aos sócios definir no contrato a hipótese de distribuição desproporcional de dividendos ou lucros, fato é que deve haver uma razão negocial para tanto, sob pena de se caracterizar como mera liberalidade, característica intrínseca da operação de doação. E, no caso em debate, de fato, restou caracterizada a liberalidade”, afirma em seu voto o relator de um caso na 4ª Câmara, desembargador Paulo Barcellos Gatti (processo nº 1089011-58.2023.8.26.0053).
“Sociedades precisam registrar em ata motivações da desproporção” — Carlos Schenato
No caso, uma holding familiar de projetos e empreendimentos com patrimônio líquido de R$ 65 milhões era dividida da seguinte forma: o pai detinha 70%, a mãe 28% e dois filhos 1% cada um. Contudo, na distribuição de R$ 52 milhões, os filhos ficaram com R$ 24 milhões cada e os pais com R$ 2 milhões cada. Como se os filhos tivessem individualmente 45% do capital social.
A outra decisão do TJSP contrária aos contribuintes também é relativa a uma holding familiar. No caso, a 6ª Câmara destacou o fato de o titular de apenas 0,13% das cotas ter recebido R$ 208 mil em vez de R$ 4,4 mil em dividendos (apelação nº. 1087688- 18.2023.8.26.0053).
“Todas as sociedades que têm adotado a distribuição de dividendos de acordo com a participação dos sócios no resultado precisam redobrar o cuidado para registrar as motivações de eventual desproporcionalidade em ata”, diz Carlos Schenato. “A legislação estadual paulista não fala especificamente sobre distribuição desproporcional de dividendos, mas determina que doação por liberalidade deve ser tributada pelo ITCMD.”
Schenato lembra também que, a partir do momento em que há divergência nos tribunais estaduais, pode-se recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) para pacificação da dúvida. A Corte só não pode reanalisar fatos.
Para a tributarista Maria Paula Molinar, o que chamou mais a atenção sobre a recente decisão da 4ª Câmara do TJSP é que, embora as partes envolvidas no caso, tenham relação de parentalidade, a decisão não dá enfoque ao vínculo entre os sócios. “Os desembargadores entendem a distribuição desproporcional de lucro como doação por ausência de propósito negocial para que determinadas pessoas recebam de maneira diferenciada, o que extrapola os limites legais”, afirma.
Segundo Alamy Candido, sócio-fundador da banca, se há um lucro contábil reconhecido no balanço e regra prevista no estatuto permitindo a desproporcionalidade, não é preciso dar justificativa econômica. “Mas o reconhecimento dessa exigência de propósito negocial poderá gerar força para os demais Fiscos do país adotarem o mesmo procedimento do Fisco paulista”, diz.
Ele acrescenta que, esse argumento, “ainda pode passar a ser usado pela autoridade fiscal federal para reconhecer dividendos distribuídos desproporcionalmente como rendimento tributável e passar a cobrar Imposto de Renda”. “Pode dar um poder para a caneta do fiscal que hoje ele não tem.”
A alíquota do ITCMD varia de Estado para Estado. Em São Paulo e no Paraná, por exemplo, é fixa em 4%. Em Santa Catarina era de 8% mas, com edição da Lei nº 19.053/2024, passou a ser progressiva de 1% (até R$ 20 mil), 3% (entre R$ 20.000,01 e R$ 50 mil), 5% (entre R$ 50.000,01 e R$ 150 mil) e 7% (acima de R$ 150 mil). A reforma tributária impôs a progressividade para todos os Estados, que devem instituir leis estaduais nesse sentido.
FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR LAURA IGNACIO — DE SÃO PAULO