Apesar de inegáveis avanços, novo sistema fiscal não foi analisado previamente sob a óptica processual
O sistema tributário brasileiro sobre o consumo foi instituído pela Constituição de 1967, atribuindo aos estados a competência do Imposto sobre Operações de Circulação de Mercadorias (ICM), os municípios o Imposto sobre Serviços (ISS), e a União o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), o Imposto sobre Serviços de Transportes e de Comunicações (ISTC), e contribuições sociais – Contribuição ao Programa de Integração Social (PIS) e Contribuição ao Fundo de Investimento Social (Finsocial).
Já a CF/1988 não trouxe grandes mudanças no sistema tributário, tendo alterado que (i) o ISTC foi incorporado ao ICM dos estados e, assim, este teve seu nome atualizado para Imposto sobre Operações de Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicações (ICMS), e (ii) o Finsocial foi posteriormente substituído pela Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins).
Assim, as competências passaram a ser: (i) União: IPI, PIS e Cofins; (ii) estados: ICMS; e (iii) municípios: ISS.
Essa segmentação buscava fortalecer o federalismo, garantindo autonomia econômica a estados, Distrito Federal e municípios. Contudo, isso gerou complexidade excessiva que permitia a edição de milhares de normas tributárias em diferentes entes federativos –podendo-se chegar, ao menos, a 1 lei federal de IPI, 1 lei federal de PIS, 1 lei federal de Cofins, 26 leis estaduais de ICMS, 1 lei distrital de ICMS e mais 1 lei distrital de ISS (ambas do DF), mais 1 lei distrital de ISS (de Fernando de Noronha) e 5.568 leis municipais de ISS (isso sem contar as inúmeras normas infralegais).
Com isso, o Congresso Nacional iniciou, em 2019, debates sobre a reforma tributária do consumo, o que culminou na promulgação da Emenda Constitucional 132/2023. Para simplificar o sistema tributário, substituiu-se (i) o PIS, a Cofins e o IPI (parcialmente) pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), e (ii) o ICMS e o ISS pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Além disso, houve a criação do Imposto Seletivo (IS), que incidirá sobre atividades prejudiciais à saúde e/ou ao meio-ambiente.
A CBS e o IS serão de competência da União, enquanto o IBS, em respeito ao federalismo, terá competência compartilhada entre estados, DF e municípios, com gestão centralizada (por conta da busca à simplificação), por intermédio do Comitê Gestor do IBS (CGIBS) e da Administração Federal.
O IBS e a CBS serão “gêmeos” que possuirão mesmos fatos geradores, bases de cálculo e possibilidades de creditamento, com poucas e específicas distinções. Por essa razão, quase tudo que será aplicável ao imposto deverá ser replicado à contribuição e vice-versa.
Por conta disso, seria de se acreditar que, em caso de questionamentos e, eventualmente, a instauração de lides, os processos (administrativo e judicial) deveriam seguir conjuntamente ou que fosse um único procedimento envolvendo tanto o IBS quanto a CBS. Mas não é isso o que se vê das legislações editadas até o momento.
A competência da CBS é federal e, com isso, caberá à Secretaria da Receita Federal fiscalizar esse tributo. Por outro lado, o IBS será de competência conjunta de estados, DF e municípios, e a fiscalização poderá se dar por todos esses entes tributantes (de maneira regulamentada pelo CGIBS).
Essa competência conjunta traz o primeiro dos problemas. Por exemplo, uma autoridade fiscal municipal poderá compreender que o IBS não é devido, enquanto a fiscalização estadual poderá ter entendimento diverso e querer exigir o recolhimento do imposto naquela mesma situação.
E embora existam mecanismos para impedir interpretações conflitantes dos entes tributantes, como o PLP 108/2024, não é impossível imaginar a situação em que uma autoridade fiscal discorde de outra e cobre o crédito tributário sobre o IBS ou a CBS, levando o contribuinte a ter que comprovar a dispensa ao recolhimento em processos administrativos e judiciais.
Além disso, há de se descartar outra hipótese, em que a autoridade fiscal competente pelo IBS lavre termo dispensando o contribuinte do recolhimento do imposto e, para aquele mesmo fato, a fiscalização federal compreenda pela necessidade de cobrança da CBS. Se são “gêmeos”, como pode o IBS não incidir e a CBS ser devida? Se estará diante de uma relação kafkaniana (“situação […] quase absurda e esquizofrênica, repleta de procedimentos burocráticos e totalitários”, in Michaelis).
Mas não é só. Se as duas autoridades fiscais lavrarem dois autos de infração (um de IBS e outro de CBS), o contribuinte que optar por impugnar as cobranças se verá diante de um duplo contencioso fiscal, em que (i) um processo (da CBS) tramitará perante a Receita Federal e o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf); e (ii) outro feito (de IBS) tramitará junto ao CGIBS. E se o CARF se manifestar pela não incidência da contribuição e o CGIBS compreender pela incidência do IBS?
É bem verdade que o PLP 108/2024 busca trazer a implementação do Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias, que terá por finalidade a uniformização da jurisprudência de IBS e CBS. Mas antes disso ocorrer, muitos processos poderão ter desfechos conflitantes indissolúveis e que novamente levarão o contribuinte à insegurança jurídica.
E ainda que tal Comitê tenha, hipoteticamente, uma atuação imediata e faça com que a segurança jurídica seja estabelecida de maneira plena em âmbito administrativo, o contribuinte não se verá longe de uma potencial dissonância jurisprudencial, visto que, em caso de manutenção dos dois lançamentos em processos administrativos, poderá judicializar o tema, tendo que ingressar com ação junto à justiça comum para tratar do IBS e outra junto à justiça federal para discutir a CBS.
Ou seja, uma mesma temática poderá ser decidida de uma maneira por um Tribunal de Justiça e ter desfecho distinto por um Tribunal Regional Federal.
E embora essas celeumas possam ser solucionadas pelo Supremo Tribunal Federal (em matéria constitucional) e pelo Superior Tribunal de Justiça (em temas envolvendo normas infraconstitucionais), o contribuinte ainda estará sujeito a eventuais e distintas ações rescisórias que poderão ser ajuizadas perante os tribunais (competência estadual para o IBS e federal para a CBS), o que o deixa em uma situação de ainda mais instabilidade.
Em meio a tudo isso, não se pode esquecer das (recorrentes) situações em que um processo tramita de maneira célere e outro, que trate do mesmo fato gerador, de forma morosa. Onde ficará a segurança jurídica com tamanho descompasso processual?
Por essa razão, é de se concluir que, mesmo diante dos avanços identificados por meio da reforma tributária (que trará inegável simplificação), o novo sistema fiscal não foi analisado previamente sob a óptica processual, de modo que essa segregação de competências poderá acarretar situações prejudiciais, razão pela qual seria preferível que (i) o IBS e a CBS tivessem processo administrativo único, tramitando em um mesmo órgão julgador (ou o CGIBS, ou o Carf); e (ii) a EC 132/2023 disciplinasse que o IBS, apesar de ser de competência de estados, DF e municípios, terá seus litígios julgados pela Justiça Federal, em conjunto com a CBS.
FONTE: JOTA – POR SÉRGIO GRAMA LIMA E BRUNO ROMANO