A reforma tributária exige uma abordagem específica para os crimes tributários, uma vez que essa questão se tornará parte do dia a dia dos contribuintes
A unificação dos tributos sobre o consumo na CBS (federal) e no IBS (estadual e municipal) promovida pela reforma tributária (Emenda Constitucional nº 132/2023 e Lei Complementar nº 214/2025) promete simplificação no recolhimento dos tributos para os contribuintes e aumento de eficiência para os Fiscos. Ela centraliza a arrecadação e a cobrança de tributos que antes dependiam individualmente da administração de cada ente federado.
Essa mudança terá um impacto relevante na responsabilização penal por crimes tributários, especificamente no tema do concurso de crimes.
Apesar da unificação legislativa e operacional (Receita Federal e Comitê Gestor do IBS), do ponto de vista jurídico, ainda continuaremos com tributos distintos: um federal (CBS), um estadual (IBS) e um municipal (IBS). A Constituição estabelece que o IBS é de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e municípios. Isso significa que, embora a arrecadação e a cobrança sejam centralizadas pelo Comitê Gestor, cada ente federado mantém sua autonomia para definir alíquotas, fiscalizar e lançar o tributo, conforme disposto no artigo 324 da Lei Complementar nº 214/2025.
Na prática, isso implica que um mesmo fato jurídico-tributário impactará, simultaneamente, patrimônios públicos de diversas titularidades.
O desdobramento penal desse cenário é preocupante: a possibilidade de caracterização automática de múltiplos crimes para cada conduta fraudulenta. Esse entendimento pode resultar em uma resposta penal excessivamente severa e desproporcional, considerando que o contribuinte não tem controle sobre essa fragmentação e jamais poderá optar por cometer uma fraude exclusivamente em relação à CBS ou ao IBS, já que ambos estão umbilicalmente ligados.
O Direito Penal lida há muito tempo com a questão da quantidade de pena que deve ser aplicada em situações de concurso de crimes. Isso ocorre quando diversos crimes são cometidos a partir de uma única ação humana (concurso formal), como uma colisão no trânsito com várias vítimas. E também quando vários crimes decorrentes de várias ações humanas são praticados em circunstâncias que tornam injusta a imposição de todas as penas somadas (crime continuado), como no caso de várias apropriações indébitas praticadas pela mesma pessoa contra a mesma vítima com proximidade temporal. A matéria está regulada nos artigos 69 a 71 do Código Penal.
Apesar de sua importância, essa matéria é pouco discutida no âmbito penal tributário. No cenário atual, é comum encontrar situações como a repetição sistemática de condutas de desconto e não recolhimento de tributos ao longo do ano ou, ainda, uma única fraude que impacta a base de cálculo de diversos tributos simultaneamente, como ISS/PIS-Cofins, IRPJ/CSSL, ICMS/PIS-Cofins.
Esses exemplos, frequentes na prática, evidenciam o alto risco de uma resposta penal desproporcional, especialmente em um ambiente onde a repetição de condutas ou os efeitos multiplicadores de uma única infração sobre vários tributos são inevitáveis.
A discussão sobre o tema também é crucial na avaliação da insignificância da conduta ou no reconhecimento da possibilidade de aumento da pena devido ao grave dano coletivo. Afinal, sem uma definição clara do período a ser considerado para calcular o prejuízo causado pelo crime tributário, como determinar se a infração é insignificante ou se representa um dano significativo à coletividade?”
Em países como Espanha e Argentina, onde há uma cota tributária estabelecida para diferenciar infrações administrativas de crimes, foi adotado um ‘período de apuração’ especial para fins penais. Nesses casos, considera-se o intervalo de um ano, independentemente de o tributo possuir prazos menores de apuração ou antecipação de pagamento. Essa abordagem faz toda a diferença, não apenas para atingir o limite de relevância penal, mas também para a caracterização de uma única prática criminosa, resultando, assim, em uma única pena.
Essa medida é coerente, pois a danosidade social de uma conduta que mereça a sanção penal não pode estar atrelada à forma como o legislador estruturou os períodos de apuração dos tributos – sejam eles anuais, mensais, quinzenais ou semanais.
Atualmente, nossa legislação não aborda essa questão de forma específica, e a jurisprudência que reconhece a insignificância não estabelece critérios claros sobre o período no qual a repetição de condutas deve ser analisada.
É fundamental refletir se uma única declaração que abrange diversos fatos geradores deve ser considerada uma única ação do ponto de vista penal, o que atrairia a aplicação do concurso formal – resultando em uma pena única, com aumento -, ou se deve ser tratada como múltiplos resultados, configurando concurso material, com a soma das penas por cada patrimônio afetado ou cada tipo de tributo envolvido. Além disso, há a possibilidade de enquadramento como crime continuado – com uma só pena aumentada – ou até mesmo como crime único.
Embora não seja comum criar regras específicas para definir a unidade ou pluralidade de crimes, também não é comum que caiba ao legislador extrapenal (tributário, neste caso) fracionar o bem jurídico protegido ou mesmo estabelecer o período de consideração das condutas que têm repercussão penal.
A reforma tributária exige uma abordagem específica para os crimes tributários, uma vez que essa questão se tornará parte do dia a dia dos contribuintes.
Fernanda Vilares, Heloisa Estellita, Fernanda Tórtima, Joana Siqueira e Aldo de Paula Júnior são, respectivamente, coordenadoras, pesquisadoras e consultor da equipe da pesquisa “Evasão Fiscal: uma proposta legislativa para debate” do Núcleo de Direito Penal e Processual Penal da FGV Direito SP
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FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR FERNANDA VILARES E HELOISA ESTELLITA