Não é difícil prever que a aplicação desses novos critérios não será simples e ensejará discussões e conflitos inéditos.
Uma das principais questões sobre a reforma tributária consiste em saber se o novo IVA dual, composto pela CBS federal e pelo IBS dos Estados e municípios, será de fato mais simples do que os atuais tributos sobre consumo, principalmente ICMS, ISS, PIS e Cofins, e quais pontos da nova legislação têm mais potencial para conflitos.
Acreditamos que haverá alguma simplificação, sobretudo porque a produção de normas sobre o novo IVA dual ficará muito mais centralizada no Congresso Nacional e no Comitê Gestor do IBS.
Ainda que diversos princípios e normas gerais dos atuais tributos sobre consumo sejam definidos em âmbito nacional, com razoável nível de detalhamento, pela Constituição Federal e em leis complementares, especialmente Código Tributário Nacional, Lei Kandir (ICMS) e Lei Complementar (LC) nº 116 (ISS), no sistema atual os entes subnacionais possuem grande autonomia para legislar sobre os tributos de sua competência, resultando em 27 leis estaduais e respectivos regulamentos de ICMS, milhares de leis e regulamentos municipais de ISS, além de leis, regulamentos e um sem número de atos normativos sobre obrigações acessórias, encargos, processos administrativos e temas correlatos.
Para acrescentar ainda mais complexidade, muitas dessas normas se afastam das diretrizes nacionais de tributação por meio de regimes diferenciados de apuração, pautas, hipóteses de substituição, de antecipação e outras criações bastante “autorais” dos entes subnacionais, fazendo com que os tributos locais quase não possam mais ser reconhecidos como ICMS ou ISS.
Nesse contexto, a centralização das normas do IVA dual provavelmente trará vantagens para o contribuinte, que se submeterá a uma tributação de perfil verdadeiramente nacional, regrada e fiscalizada de forma compartilhada entre os entes federativos, em substituição a 27 ICMS e milhares de ISS regidos por leis específicas e díspares.
De outro lado, uma análise preliminar da Lei Complementar nº 214/2025 nos permite identificar alguns pontos que continuarão a render muita controvérsia. Um desses pontos diz respeito ao chamado critério espacial da regra matriz do novo IVA dual, sobretudo para o IBS, que será o tributo a ser repartido pelos Estados, Distrito Federal e municípios, que seguirão com autonomia para definir as alíquotas do imposto devido em seus territórios.
No sistema tributário atual, esse tema sempre gerou disputas, cabendo destacar aquelas em torno do local onde é devido o ICMS sobre importações de mercadorias (destinatário jurídico versus físico) e o ISS (local da prestação versus do prestador). Ambas as disputas se estenderam por décadas em nossos tribunais e produziram farta doutrina e jurisprudência sobre o ente subnacional competente para tributar operações e prestações que se desenrolavam em mais de um Estado ou município, inclusive após a edição da LC 116.
No entanto, todo o esforço acumulado para resolver esses conflitos de competência tributária em relação ao ISS e ao ICMS não terá grande valia para o novo IVA dual, que será norteado pelo princípio do destino e pelos conceitos de “bens” e “fornecimentos”, que são mais abrangentes e fluídos do que “circulação de mercadorias” e “prestação de serviços” na acepção jurídica e mais rígida tradicionalmente dada a esses termos. A mudança da tributação na origem pelo destino é perfeitamente justificada sob o ponto de vista econômico e de justiça fiscal. Afinal de contas, estamos falando de tributos sobre consumo, que devem ser exigidos onde esse consumo ocorre.
Por outro lado, a aplicação jurídica do princípio do destino não é elementar e foge a uma tradição de décadas de tributarmos serviços no local do prestador ou onde ocorre a prestação, mas raramente no local do tomador, salvo nos casos de ISS sobre importação, que é uma obrigação relativamente recente e que ainda não foi bem assentada na jurisprudência.
A esse respeito, o artigo 11 da LC 214/2025 contempla mais de 10 regras para definição do local de operação tributável pelo IVA dual, muitas delas sem correspondente da legislação preexistente, trazendo critérios que ainda não foram postos em prática, muito menos passaram pelo crivo do judiciário.
Não é difícil prever que a aplicação desses novos critérios não será simples e ensejará discussões e conflitos inéditos. No inciso III do artigo 11 da LC 214/2025, por exemplo, o serviço fruído presencialmente por pessoa física é devido ao local de sua prestação. Contudo, o parágrafo 5º desse mesmo artigo 11 determina que, se o serviço for prestado a distância, ainda que parcialmente, o IVA dual passa a ser devido no local do domicílio principal do adquirente.
No caso de uma consulta jurídica, por exemplo, o fato de ela ser prestada verbalmente na presença do cliente ou por meio de um aplicativo pode mudar o local do recolhimento e a alíquota aplicada. Além disso, caso a consulta tenha sido realizada presencialmente, mas, posteriormente, o cliente peça um esclarecimento por e-mail, em que medida esse esclarecimento pode deslocar a obrigação tributária do local da prestação para o do domicílio do tomador e, ainda, alterar a alíquota do IBS?
Alguns elementos da tributação são inerentemente complexos e os possíveis conflitos em torno do local onde o tributo é devido são uma decorrência quase indissociável de um modelo constitucional que outorga aos Estados e municípios competência sobre um tributo de perfil claramente nacional e às vezes supranacional, pois recai sobre negócios envolvendo partes situadas em diversas localidades.
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FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR LUIZ CARLOS JUNQUEIRA