Recente decisão do STJ sinaliza marco importante para o direito recuperacional, além de indicar a estabilização da jurisprudência no sentido de que não há mais um “juízo universal”.
A Lei nº 11.101/2005 (LRF) disciplina a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Diferentemente do que ocorria na legislação anterior (Decreto-Lei nº 7.661/45), o foco desse normativo é a preservação da empresa, sempre privilegiando sua função social, de modo a salvaguardar a produção de bens e serviços, os empregos e os interesses dos credores.
O instituto da recuperação judicial foi umas das novidades desse normativo e possibilitou a ampliação das alternativas de saneamento financeiro das empresas em crise com o fim de evitar sua quebra.
Apesar do inquestionável avanço, desde o já longínquo ano de 2005, quando a LRF entrou em vigor, muitas foram as celeumas levadas ao crivo do Judiciário, inclusive ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), cuja missão é dar a última palavra sobre a legislação infraconstitucional, realizando uma interpretação que equalize interesses, sem deixar de observar os princípios do Direito brasileiro.
Nesse cenário, uma das principais discussões é a existência ou não de competência irrestrita do juízo recuperacional para controlar os atos constritivos em face do patrimônio da empresa recuperanda, não apenas após o exaurimento do período de blindagem – conhecido como stay period -, mas também depois da concessão da recuperação judicial. A definição de tal regra tem especial relevo para os credores extraconcursais, tais como os que possuem crédito com garantia fiduciária.
Mesmo a entrada em vigor da Lei nº 14.112/2020, que alterou dispositivos da LRF deixando mais claro o conteúdo e a extensão da competência do juízo da recuperação judicial, não foi suficiente para pacificar a jurisprudência do STJ e de outros tribunais pátrios.
De um lado, a Corte Superior entendia pela ampla competência (universal, por assim dizer) do juízo recuperacional para deliberar sobre toda e qualquer constrição judicial efetivada sobre ativos da empresa em fase de soerguimento. Com base nesse posicionamento, penhoras sobre bens das recuperandas, mesmo aquelas objeto de garantias fiduciárias (créditos extraconcursais), ficavam sujeitas à chancela do juízo recuperacional, ainda que o stay period já tivesse decorrido ou após a própria concessão da recuperação judicial.
Em 2023, durante a vigência das alterações promovidas pela Lei 14.112/2020 – que limitaram a competência do juízo da Recuperação -, a 4ª Turma julgou o REsp 2061093/SP e entendeu que o “término do stay period não enseja, isolada e automaticamente, a possibilidade de constrição judicial sobre essa espécie de bens, sob pena de subverter o próprio escopo do procedimento recuperacional”.
Em oposição, estava a corrente que julgava ser limitada, quanto ao escopo e ao lapso temporal, a competência do juízo da recuperação judicial. Como exemplo, é possível citar o julgamento do REsp 1991103/MT, realizado em 2023, ocasião na qual a 3ª Turma assentou que, “a partir da vigência da Lei nº 14.112/2020, com aplicação imediata aos processos em trâmite (afinal se trata de regra processual que cuida de questão afeta à própria competência), o juízo da recuperação judicial tem a competência específica para determinar o sobrestamento dos atos de constrição exarados no bojo de execução de crédito extraconcursal que recaíam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial durante o período de blindagem”.
Em julgamento recente, no entanto, a 2ª Seção do STJ parece ter pacificado a questão. No voto condutor do Conflito de Competência 196846, o ministro Marco Aurélio Belizze afirmou que, “com o advento da Lei nº 14.112/2020, tem-se não mais haver espaço – diante de seus termos resolutivos – para a interpretação que confere ao juízo da recuperação judicial o status de competente universal para deliberar sobre toda e qualquer constrição judicial efetivada no âmbito das execuções de crédito extraconcursal, a pretexto de sua essencialidade ao desenvolvimento de sua atividade, sobretudo em momento posterior ao decurso do stay period.” O ministro relator foi acompanhado por outros cinco julgadores, tendo apenas o ministro Moura Ribeiro divergido.
Dessa forma, sagrou-se vencedora a corrente segundo a qual a Lei nº 14.112/2020 “foi absolutamente precisa em definir o espaço temporal em que a competência do juízo recuperacional deve ser exercida, distinguindo-o no caso de execução de crédito extraconcursal (até o fim do stay period) e no caso de execução fiscal (até o encerramento da recuperação judicial)”.
Essa decisão do STJ sinaliza marco importante para o direito recuperacional no Brasil, além de indicar a estabilização da jurisprudência no sentido de que não há mais um “juízo universal”. Traz maior clareza para o mercado e segurança jurídica aos credores extraconcursais, notadamente aqueles titulares de garantas fiduciárias, que, com frequência, eram colocados num verdadeiro limbo jurídico; não podiam executar os bens dados em garantia, nem quaisquer outros, tampouco se submetiam à recuperação judicial.
Esse risco (que, naturalmente, é precificado pelo mercado financeiro e se traduz em juros mais elevados), na medida em que dissipado, a partir da assimilação dessa paradigmática decisão do STJ, certamente trará efeitos positivos (e bastante relevantes) para o mercado de crédito como um todo.
FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR ALEXANDRE CATRAMBY E DANÚBIA SOUTO E THATYANE RIBEIRO