Próximo a completar o primeiro ano de promulgação, de plano, nos parece correto asseverar que a denominação “reforma tributária do consumo” insculpida à Emenda Constitucional nº 132/2023 [1] (EC 132) reflete apenas a superfície das modificações às quais o sistema jurídico brasileiro, mormente o subsistema tributário nacional, foi submetido.
Se de início nos apegamos aos debates circunscritos à extinção e criação de tributos, o andar desses meses de análises, estudos e discussões credencia a EC 132 ao título de “reforma dos princípios tributários constitucionais”.
Isso porque, enquanto na origem, em 1988, as limitações ao poder de tributar reputavam valor deôntico negativo-proibitivo à exigência tributária — não exigir tributo sem lei, não exigir tributo desproporcionalmente à capacidade contributiva, não exigir tributo de monta confiscatória, não exigir tributo no mesmo exercício financeiro —, a EC 132 introduziu valores positivos-obrigatórios à tributação — seja simplificada, seja transparente, seja justa, seja cooperativa e seja protetiva do meio ambiente [2].
E com o mesmo vetor positivo-obrigatório, aos siameses imposto sobre bens e serviços (IBS) e contribuição sobre bens e serviços (CBS) lhes foram imputados os valores principiológicos da neutralidade e da não cumulatividade [3].
É dado manifestado pela linguagem, portanto, que a tributação sobre o consumo trazida pela EC 132 materializada pelo IBS, a CBS e muito também pelo Imposto Seletivo (IS) têm, obrigatoriamente, valores enraizados dos quais o legislador infraconstitucional regulamentador estará involucrado.
Neutralidade econômica
Em outros dizeres, a neutralidade anunciada como pedra fundamental do IBS e da CBS só será objetivamente internalizada ao sistema, se condicionada e combinada à plena não cumulatividade.
Por essencialmente econômica, a neutralidade [4] será desafiada por todo tempo pela maior ou menor real possibilidade do mais amplo creditamento oriundo dos bens, serviços e direitos adquiridos se, jurídica e rigidamente, garantido no texto da futura lei complementar regulamentadora do IBS e da CBS.
Queremos dizer, qualquer vedação ao creditamento capaz de impor a mínima cumulatividade ao IBS e à CBS terá o condão de derruir a neutralidade a qual, como princípio, não admitirá flexibilizações sob qualquer motivação.
Por isso, o legislador complementar à frente da exceção trazida no inciso VIII, do § 1º, do artigo 156-A [5] deve manter cautela e freio irrepreensíveis dado que, sob qualquer intenção refugida da não cumulatividade, lançará a lei complementar regulamentadora à inconstitucionalidade.
As anotações acimas importam em grande medida porque o funcionamento e a eficácia da tributação sobre o consumo tanto quanto prevista na EC 132 pende e depende da criação e funcionamento de um imodesto e grandiloquente sistema de pagamentos — o split payment — hábil a segregar e recolher os valores devidos do IBS e da CBS aos cofres públicos, conforme artigo 51 [6], do Projeto de Lei Complementar 68 (PLP 68).
Princípios da tributação sobre o consumo
Reflexo imediato, os princípios constitucionais da tributação sobre o consumo estão condicionados [7] a um complexo sistema tecnologicamente perfeito para, no átimo da materialização do fato jurídico-tributário, distinguir os valores que compõem a operação, garantindo ao fornecedor a exatidão do recebimento, apartar os valores devidos a título do IBS e CBS na operação, extinguir o crédito tributário por ele devido, remetendo as quotas de cada um desses tributos ao Comitê Gestor (IBS) e à Receita Federal.
Não se duvida do desenvolvimento tecnológico tampouco da capacitação do Fisco, haja vista a evolução irradiada nacionalmente pelo Sistema Público de Escrituração Digital (Sped), cujo arcabouço integra todos os entes políticos em rede e reúne informações fiscais e tributárias instantâneas, as quais, depuradas à velocidade da inteligência artificial, habilitam a fiscalização a um controle de conformidade intenso, sendo exemplo observado e perseguido por diversos países.
Todavia, a operacionalidade do split payment supera em complexidade para muito além do cumprimento das obrigações instrumentais conhecidas atualmente dado que, atuando no instante do fato jurídico-tributário, em primeiro plano modifica relevantemente o modus operandi da rotina do contribuinte.
De pronto ao instante do fato jurídico-tributário, o split payment trará da realidade dos fatos sociais inerentes à operação, a formalização em linguagem jurídica do creditamento pleno do IBS e da CBS garantindo ao adquirente e ultimando com a extinção do crédito tributário, sendo esse mecanismo tecnológico o fiador em si mesmo, da não cumulatividade e da neutralidade.
Programação do contribuinte
O cenário emoldura sérias reflexões. Hoje, o contribuinte pratica as operações de sua índole e tem à disposição o período de um mês para adquirir insumos, fornecer bens, serviços e programar-se, nesse interregno, às datas dos vencimentos das despesas e dos recebimentos inerentes ao exercício da atividade.
Também no cenário atual, mesmo se o seu fornecedor não estiver adimplente com o fisco, o contribuinte poderá, nesse período mensal, apropriar-se dos créditos oriundos das aquisições para, em sua escrituração fiscal, confrontá-los aos débitos cujo saldo quando devedor terá vencimento em data certa somente no mês subsequente.
Sob a insígnia do combate à sonegação, o split payment desmoronará a programação e organização do fluxo e caixa do contribuinte em situações reais ao mundo da vida, as quais a tecnocracia aventada pelo PLP 68 não tem sido incapaz de refutar.
De início, o contribuinte enfrentará o menor ingresso de valores no caixa sem qualquer certeza da possibilidade do uso dos créditos para compensação dos débitos, seja pela falta de previsão legal no PLP 68[8], seja pelo entrave legal previsto, já que para o creditamento do IBS e da CBS [9] a ser compensado no seu saldo devedor, esse contribuinte, enquanto adquirente de bens e serviços, estará condicionado ao efetivo adimplemento dos seus fornecedores [10].
Não obstante ao duvidoso entrave legal, a eficácia jurídica da não cumulatividade plena dependerá por completo do perfeito funcionamento da grandiosidade tecnológica proposta no PLP, sujeitando o prestador de serviços de pagamentos a consultas ao Comitê Gestor e à Receita Federal de modo a certificar da existência de créditos compensáveis [11].
Risco para o contribuinte
Assim, considerando por qualquer motivo, uma falha de comunicação ou indisponibilidade do sistema, o contribuinte será onerado pagando integralmente, sem direito à compensação dos créditos, os valores devidos do IBS e da CBS.
De se pensar, nesses casos, outras possibilidades do mundo real. Se a consulta ao Comitê Gestor for positiva, mas ocorrer qualquer falha ao consultar a Receita Federal, o contribuinte será considerado inadimplente em relação à CBS e penalizado com multa e juros.
Nesse exemplo, também devemos considerar que, além de o pagamento dos tributos ser instantâneo e concomitante ao fato jurídico-tributário — e não mais em data futura no mês subsequente —, os prestadores de serviços de pagamento serão os responsáveis pelo recolhimento do IBS e da CBS.
Se isso for isso mesmo, qual a responsabilidade dessas instituições em relação ao contribuinte que não terá mais a guia de pagamento em mãos para comprovar a quitação? Qual será o valor das tarifas bancárias impingido ao contribuinte? O pagamento dessa tarifa dará direito a crédito?
Novamente aqui, os princípios trazidos pela EC 132 são postos à provação de eficácia jurídica, isto é, por mais que etéreas, a Justiça Tributária e a simplicidade nesses pequenos, mas sobretudo, reais exemplos, parecem abaladas.
Em operações de intensa volumetria, tal como ocorrem nas redes de supermercados, qualquer falha sistêmica interna ao complexo tecnológico projetado lançará claro prejuízo não só ao fluxo de caixa, mas ao todo do empreendimento. Igual ocorrerá nos pequenos e médios negócios, os quais, pela sua menor possibilidade de investimento em tecnologia, poderão ser lançados à ruína.
Como último possível exemplo, podemos aventar sobre aqueles empreendimentos que não contam com aquisições diárias. Nesses casos, a tributação sobre suas operações de fornecimento de bens ou serviços realizadas dia-a-dia será suportada exclusivamente pelo disponível em caixa, sem abatimentos e compensações com créditos.
Vê-se que o argumento do combate à sonegação fiscal é derruído frente a situações comezinhas restando, claro, o único objetivo do abastecimento regular e diário dos cofres públicos. No mais, acomodar a universalidade de contribuintes sob a sombra de potencial sonegador não parece atender o princípio da cooperação.
Fatos do inexorável mundo real.
___________________________________________________________________________
[1] Publicada no Diário Oficial da União aos 21 de dezembro de 2023. Vide em :
https://legislacao.presidencia.gov.br/atos/?tipo=EMC&numero=132&ano=2023&ato=908c3ZE90MZpWT54c (acessado em 15/11/2024)
[2] § 3º O Sistema Tributário Nacional deve observar os princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária, da cooperação e da defesa do meio ambiente.
[3] § 1º O imposto previsto no caput será informado pelo princípio da neutralidade e atenderá ao seguinte (…)
VIII – será não cumulativo, compensando-se o imposto devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial, inclusive direito, ou de serviço (…)
§16. Aplica-se à contribuição prevista no inciso V do caput o disposto no art. 156-A, § 1º, I a VI, VIII, X a XIII, § 3º, § 5º, II a VI e IX, e §§ 6º a 11 e 13.
[4] “A neutralidade econômica, em sua essência, almeja criar um ambiente onde as decisões econômicas sejam tomadas com base em considerações puramente comerciais, sem a interferência distorciva dos tributos.” CARVALHO, Osvaldo Santos de e OLIVEIRA JUNIOR, José Mauro de. 8.1 A dimensão constitucional da neutralidade e não cumulatividade do IVA Dual na EC 132/23, in A reforma do sistema tributário brasileiro sob a perspectiva do constructivismo lógico-semântico. O texto da emenda constitucional 132/2023, Coord. Paulo de Barros Carvalho, Orgs. Camila Campos Vergueiro e Lucas Galvão de Brito, p. 349. 1ª Edição. São Paulo, Coedição: IBET, Editora Noeses, 2024.
[5] VIII – (…) excetuadas exclusivamente as consideradas de uso ou consumo pessoal especificadas em lei complementar e as hipóteses previstas nesta Constituição.
[6] Art. 51. Os prestadores de serviços de pagamento participantes dos arranjos de que trata o art. 50 deverão segregar e recolher aos cofres públicos, no momento da liquidação financeira da transação de pagamento, os valores do IBS e da CBS indicados nos termos deste artigo e do regulamento (split payment).
[7] “Escrevi sobre o split payment, que no contexto da reforma tributária será o novo meio de quitação dos tributos. Mais que isso, é o “coração” da reforma tributária, conforme declaração dada por Tiago do Vale, coordenador de Assuntos Tributários do Ministério da Fazenda, à Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, onde atualmente tramita o Projeto de Lei Complementar número 68/2024” O split payment da reforma tributária e o fluxo de caixa. BERGAMINI, Adolpho, in https://veja.abril.com.br/coluna/de-olho-nos-tributos/o-split-payment-da-reforma-tributaria-e-o-fluxo-de-caixa (acessado em 16/11/2024)
[8] Na ausência de previsão legal da possibilidade de compensação dos débitos com os créditos oriundos das aquisições, o PLP 68 recebeu a 1.110ª (!) Emenda no dia 27/08/24, de autoria do Senador Eduardo Girão (Partido Novo) imputando a um outro imodesto sistema tecnológico, chamado de “conta corrente tributária digital”, o controle em tempo real, dos débitos e créditos do IBS e da CBS. Para leitura: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9791777&ts=1725394077024
[9] § 2º Os valores dos créditos do IBS e da CBS apropriados corresponderão aos valores, respectivamente, do IBS e da CBS efetivamente pago em relação às aquisições.
[10] Art. 156-A, § 5º, II – o regime de compensação, podendo estabelecer hipóteses em que o aproveitamento do crédito ficará condicionado à verificação do efetivo recolhimento do imposto incidente sobre a operação com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou com serviços (…)
[11] § 5º O regulamento poderá determinar que o prestador de serviço de pagamento consulte o Comitê Gestor do IBS e a RFB, com base nas informações de que trata o inciso I do § 1º, acerca dos valores do IBS e da CBS a serem segregados.
FONTE: CONSULTOR JURIDICO – POR ALEXANDRE PANTOJA