Pesquisa da plataforma de jurimetria Juit mostra que medida foi rejeitada em 80% dos casos.
O Judiciário resiste à penhora de imóvel considerado bem de família, mesmo de alto valor. Pesquisa da plataforma de jurimetria Juit, feita a pedido do Valor, mostra que a medida foi rejeitada em cerca de 80% dos casos julgados entre setembro de 2020 e igual mês deste ano – quase a metade dos pedidos analisados envolvia bens entre R$ 500 mil e R$ 1,5 milhão.
A penhora de bem de alto valor é um dos pontos polêmicos da proposta de reforma do Código Civil, em tramitação no Senado. O texto permite a medida, desde que a metade do valor obtido com a venda do imóvel seja destinada ao devedor, para a aquisição de uma nova moradia.
O texto, porém, não estabelece o que seria um imóvel de alto valor, o que, segundo especialistas, poderá aumentar a judicialização sobre o tema. Hoje, a proteção para o bem de família existe em vários países e no Brasil está prevista há mais de 30 anos na Lei nº 8.009/1990.
A pesquisa da Juit encontrou 51 decisões nas quais a penhora de imóvel de família estava em discussão, a maior parte (28) no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). Em 41 dos casos analisados (80,39%), determinou-se a desconstituição da medida.
Em apenas em 10 casos a penhora foi mantida total ou parcialmente – sobre metade do valor do imóvel, por exemplo -, o que, segundo o estudo da Juit, evidencia uma forte tendência dos tribunais brasileiros em seguir a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que protege o bem de família independentemente de seu valor, com base na Lei nº 8.009/1990.
O principal precedente do STJ sobre o tema foi julgado no ano de 2016 (REsp 1.351.571). O imóvel foi avaliado em, no máximo, R$ 1,2 milhão. O placar do julgamento na 4ª Turma acabou em três votos contra e dois a favor da penhora do bem, incluindo o voto vencido do relator, ministro Luís Felipe Salomão, que hoje é presidente da comissão de juristas responsável pela atualização do Código Civil.
Na maior parte das decisões analisadas pela Juit, o valor do imóvel não é citado de forma expressa. Entre os casos em que a avaliação é indicada (19 do total), segundo a pesquisa, os bens variam de R$ 500 mil e R$ 24 milhões, “com uma grande dispersão de valores”.
O levantamento pondera que um bem de R$ 1 milhão pode ser considerado de alto padrão se estiver situado no interior de um Estado, mas eventualmente não pode ser considerado de alto padrão se estiver em uma capital como São Paulo.
Um dos casos raros de penhora de imóvel de valor alto foi proferido pela 16ª Câmara de Direito Privado do TJSP, em 2021, contra um empresário do ramo financeiro. O imóvel executado, avaliado em R$ 24 milhões, foi admitido para penhora, reservado 10% de seu valor para fim de moradia (processo nº 2075933-13.2021.8.26.0000).
“Se a proteção conferida pela Lei nº 8.009/90 é a preservação de um patrimônio mínimo, visando à garantia de um mínimo existencial necessário para tornar efetiva a dignidade da pessoa humana, cumpre indagar se essa proteção se estende a um imóvel de valor declarado de R$ 24 milhões”, afirma em seu voto o relator do caso no TJSP, desembargador Ademir Modesto de Souza.
“A reforma do Código Civil pode gerar ainda mais discussão” — Rodrigo F. Lopes
A pesquisa, diz Deoclides Neto, CEO da Juit, “mostra que situações em que a penhora foi mantida representam uma minoria, vinculadas a circunstâncias específicas, como uso de recursos ilícitos ou quando há mais de um imóvel residencial pertencente à família”. Em 95,12% dos casos em que as famílias declararam que residiam no bem de família, acrescenta, o bem de alto padrão foi considerado impenhorável.
Segundo o advogado Carlos Ávila, sócio do Carneiros Advogados, o tema da penhora de bem de alto valor costuma aparecer nas grandes execuções, em que sócios são fiadores do negócio e residem em imóveis caros. “Os tribunais são tendentes a desconstituir a execução, mas há exceções. Às vezes em primeiro grau a penhora é aceita, e o TJSP aceita em alguns casos”, diz.
Lucas Menezes, advogado sócio do escritório Pessoa & Pessoa Advogados, lembra que a proteção ao imóvel de família existe para garantir a moradia com um mínimo de dignidade humana para o devedor. Por outro lado, o credor também tem direitos. “O sujeito conquistou aquele patrimônio, mas o credor também tem uma dignidade”, afirma.
A definição do alto valor é uma preocupação entre alguns advogados. Para Rodrigo Forlani Lopes, especialista em processo civil e sócio do Machado Associados, a reforma do Código Civil pode aumentar a insegurança jurídica e gerar ainda mais discussão. “Muitos imóveis poderiam ser considerados de ‘alto padrão’ com base apenas em seu valor, sem levar em conta outros aspectos”, diz o advogado.
Para Suzana Camarão Cencin Castelnau, sócia do escritório DSA Advogados, a regra pode prejudicar as pessoas com algum patrimônio, mas menor condição financeira. “Vai ficar desamparado quem tem um pouco mais de condições e mora em um imóvel, por exemplo, de R$ 2 milhões. Parece muito dinheiro, mas pode ser um imóvel recebido de herança. A lei pode criar mais um sem teto, mais um problema social.”
FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR FERNANDO TEIXEIRA — DE SÃO PAULO