A eleição de itens sujeitos a alíquotas menores ou mesmo à isenção de IBS e CBS não deve ser aleatória, diz Tathiane Piscitelli
A escolha dos bens e serviços que serão beneficiados com alíquotas reduzidas e com alíquota zero de IBS e CBS tem ocupado o debate público, especialmente em razão do impacto que a inclusão de itens pode causar na alíquota padrão do nosso IVA dual. A discussão não é nova e remonta às origens da PEC 45, quando ainda se defendia uma alíquota única sobre todos os bens e serviços, sem qualquer possibilidade de tributação reduzida sobre itens essenciais.
Como já tratei em outros textos nesta coluna, o modelo de alíquota única seria incompatível tanto com a Constituição de 1988, que reconhece o papel das políticas tributárias na realização da justiça distributiva e no enfrentamento das desigualdades, quanto com as limitações orçamentárias para implementar um regime abrangente de devolução dos tributos sobre o consumo que fosse capaz de mitigar a regressividade que seria ampliada em razão do aumento da carga tributária sobre bens e serviços essenciais. Ainda que o denominado cashback seja uma política eficaz que reconhece a ausência de capacidade econômica de determinados grupos, a realidade econômica e social do Brasil demandaria que o instrumento atingisse, ao menos, 60% da população brasileira – aqueles que, segundo o IBGE, vivem com até um salário-mínimo mensal.
O Congresso Nacional, acertadamente a meu ver, abandonou a ideia de um IVA ideal na teoria e aprovou aquele que seria possível diante da realidade nacional: alíquota padrão como regra, e uma lista taxativa de bens e serviços que podem se beneficiar ou de alíquotas reduzidas em 60% ou de alíquota zero. Isso tudo sem abandonar a ideia da devolução dos tributos para camadas mais vulnerabilizadas da população nacional. Em termos de mitigação da regressividade, portanto, hoje temos dois instrumentos cuja regulamentação está em discussão no Senado Federal. Diante disso, resta ainda uma questão: qual o critério para a construção da lista mais específica de bens e serviços que se enquadram nos regimes favorecidos? Há ainda lugar, no nosso sistema tributário, para a tributação seletiva à luz da essencialidade?
O debate é relevante, na medida em que a substituição do ICMS e de parte do IPI pelo conjunto dos novos tributos sobre o consumo (IBS, CBS e IS) resultará na perda de eficácia dos dispositivos constitucionais que deles se ocupam. Nesse rol está, justamente, a determinação de que ICMS e IPI devem ser seletivos em função da essencialidade dos bens sobre os quais incidem. Daí, pois, a pergunta: diante dessa perda de eficácia e irrelevância futura desses tributos, a essencialidade é também critério que deve ser abandonado?
A resposta é evidentemente negativa. A eleição de determinados itens como sujeitos a alíquotas menores ou mesmo à isenção de IBS e CBS não deve ser aleatória; trata-se, como se sabe, de desvios da norma padrão de incidência, que devem se justificar pela essencialidade de tais bens. A medida do que seria essencial, note-se, se dá pela conexão do acesso aos bens e serviços à realização de direitos e garantias individuais ou sociais. Exemplos podem ser úteis, para ilustrar.
Tome-se, em primeiro lugar, o caso dos alimentos ultraprocessados. Como já tratamos anteriormente, macarrão instantâneo e massas prontas congeladas estão no rol de alimentos favorecidos com a redução de alíquota em 60%. O consumo desses bens causa males inequívocos à saúde e gera impacto nos cofres da Seguridade Social. O fato de serem supostamente consumidos pela população de baixa renda não os torna essenciais, ao contrário: infirma-se o direito à saúde. Disso decorre, então, a incongruência do benefício tributário.
Outra hipótese está na discussão em torno das fraldas infantis e geriátricas. Conforme o texto atual do PLP 68, esses bens, majoritariamente consumidos por mulheres em razão do trabalho de cuidado não remunerado, não estão contemplados no regime favorecido e sofrerão tributação padrão de IBS e CBS. Ora, pelo critério da essencialidade, não há razão para não estarem na lista dos produtos com redução de 60% de alíquotas, ao mesmo tempo em que alimentos ultraprocessados estão.
A parcimônia com que se trata esse tipo de reflexão, reitere-se, está relacionada com os impactos que a ampliação da lista dos bens e serviços no regime de menor tributação pode ter na alíquota final. Contudo, é justamente por essa razão que o debate precisa ser feito: no limite, está-se discutindo quais são os setores que serão subsidiados pelo conjunto da economia de um país. Defender que a essencialidade como critério jurídico não tem mais lugar na formulação de políticas tributárias é interpretação inconsequente, que equivale a cair de joelhos à força nua e crua do lobby, do dinheiro e das conexões políticas. É a renúncia à possibilidade do uso de critérios jurídicos para fazer avaliação normativa de quem vai arcar com os ônus e gozar dos bônus da tributação.
FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR TATHIANE PISCITELLI – SÃO PAULO