A Zona Franca de Manaus (ZFM), estabelecida pelo Decreto-Lei nº 288/67 e reforçada pelas disposições constitucionais vigentes, constitui um marco no planejamento fiscal e desenvolvimento econômico brasileiro. Seu regime especial é caracterizado por um conjunto de incentivos fiscais, objetivando promover o crescimento econômico na região amazônica, um objetivo louvável dada a sua posição geográfica e desafios econômicos específicos.
Este artigo analisa a potencial não-incidência das contribuições PIS e Cofins nas importações realizadas por empresas situadas na ZFM — controvérsia relevante e atual, especialmente em tribunais superiores.
A Lei nº 10.865/2004, que instituiu o PIS e a Cofins incidentes sobre as importações, não excluiu as operações realizadas por contribuintes localizados na ZFM das referidas exações, o que, naturalmente, levou a discussão ao Poder Judiciário, com os contribuintes buscando que as normas exonerativas aplicáveis às operações de importação realizadas na ZFM pudessem ser estendidas a tais tributos.
Nos tribunais, a argumentação se concentra em dois pontos principais: a natureza especial da ZFM e a interpretação do decreto e da legislação pertinente. Os defensores da extensão da norma exonerativa argumentam que a lógica de equiparar operações na ZFM a exportações, para fins fiscais, deve naturalmente se aplicar ao PIS e à Cofins incidente nas importações. Tal interpretação é vista como um meio de manter a integridade e os objetivos do regime especial da ZFM, conforme pretendido pelo Decreto-Lei nº 288/67.
Resistência
Por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça, em discussão assemelhada, tem reconhecido repetidamente que as vendas nacionais realizadas para contribuintes localizados na ZFM são isentas de PIS e Cofins, tratando-as como exportações, nos termos do artigo 4º do Decreto-Lei nº 288/67. Esse entendimento é fundamentado na necessidade de incentivar investimentos e desenvolvimento na região, uma política alinhada com as diretrizes governamentais de longa data para a Amazônia.
No entanto, a extensão dessa lógica para as importações enfrenta resistência. Argumenta-se que o PIS e a Cofins incidentes nas importações possuem uma base legal distinta e foram concebidos para atender a finalidades fiscais específicas que diferem das operações de mercado interno. Essa visão é apoiada pela legislação que instituiu essas contribuições, indicando especificamente a materialidade das exações e a base de cálculo relacionadas à entrada de bens e serviços do exterior, sem, no entanto, excepcionar a ZFM.
A questão ganhou ainda mais relevância com a afetação dos Recursos Especiais 2.046.893/AM, 2.053.569/AM e 2.053.647/AM à sistemática dos recursos repetitivos (Tema Repetitivo nº 1.244), que tratam da matéria. Isso porque o posicionamento de ambas as turmas do STJ quanto à tese, atualmente, é amplamente desfavorável ao contribuinte.
Tal discussão foi inicialmente analisada quando do julgamento do agravo interno no Agravo em Recurso Especial nº 2.052.526/AM. Em tal acórdão, a 2 Turma aderiu aos argumentos da União Federal, decidindo que a não-incidência de PIS-Importação e de Cofins-Importação, nas importações realizadas por contribuintes situados na Zona Franca de Manaus, implicaria em extensão da isenção outorgada no artigo 4º do Decreto nº 288/67, em violação ao artigo 111, inciso II, do Código Tributário Nacional.
Assim, os ministros, naquela ocasião, deram provimento ao recurso da União Federal, em sentido contrário aos interesses do contribuinte.
Lógica do entendimento sobre vendas nacionais para a ZFM
Não se pretende, no presente artigo, desenvolver toda a argumentação relativa à envergadura constitucional das normas exonerativas da ZFM, que levariam, invariavelmente, à inconstitucionalidade de qualquer pretensão de incidência do PIS e da Cofins sobre as importações realizadas por contribuintes localizados na ZFM — e, na prática, afastam a incidência do artigo 111 do CTN à espécie, já que não se trata de “outorga de isenção”, como sustentou a União, mas sim de imunidade constitucionalmente qualificada.
A ideia do presente trabalho é demonstrar que, analisando exclusivamente os julgados do STJ em relação à não-incidência de PIS e Cofins sobre as vendas internas realizadas à ZFM, concluir-se-ia pela impossibilidade de incidência de PIS e Cofins sobre importação realizadas por contribuintes localizados na ZFM — resultado contrário à tese que tem prevalecido nos julgados sobre a matéria no âmbito da referida corte.
Para este fim, devemos rememorar a construção interpretativa que levou o STJ ao definir que as vendas nacionais realizadas a localizadas na ZFM não se sujeitam à incidência do PIS e da Cofins.
Um dos acórdãos inaugurais deste entendimento foi proferido pela 1ª Turma do E. STJ por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 223.405/MT, em 07 de agosto de 2003, quando, ao reanalisar a questão após ter sido proferida decisão que não conhecera do recurso especial, os ministros decidiram, por unanimidade, pela impossibilidade de exigência de Cofins em relação às operações realizadas à Zona Franca de Manaus, em julgado assim ementado:
“TRIBUTÁRIO – COFINS – ZONA FRANCA DE MANAUS – ISENÇÃO.- Por força do Art. 4º do DL 288/67, a isenção da COFINS, assegurada pelo Art. 7º da LC 70/91 estende-se às exportações para a Zona Franca de Manaus.”
Em seus votos, os ministros que compunham a 1ª Turma assim sustentaram:
Ministro Humberto Gomes de Barros (relator)
“Para mim, a questão é simples. Para respondê-la basta optar entre os dois termos da seguinte alternativa:
a) o Art. 4º do DL 288/67 igualando para todos os fins exportação para o estrangeiro e exportação para a Zona Franca de Manaus, atrai para estas últimas a isenção determinada pelo Art. 7º I da LC 70/91, ou;
b) o Art. 7º da LC 70/91 livra da COFINS, somente as receitas provenientes de ‘vendas ou serviços para o exterior, realizadas diretamente pelo exportador.
A opção pelo item b tem como pressuposto a assertiva de que o a equiparação determinada no Art. 4º do DL 288/67 não vale ‘para todos os fins’. Ao fazê-la, o intérprete estará restringindo o alcance deste artigo, ou negando vigência ao DL 288/67.
Ora, a igualdade de tratamento entre exportações externas e remessas para a região de Manaus constitui a característica fundamental da Zona Franca. Dizer que tal equiparação já não existe mais seria contrariar a disposição constitucional do Art. 40 do ADCT, por força da qual, a Zona Franca é mantida, ‘com suas características de área livre de comércio, de exportação e importação, e de incentivos fiscais.’
Como não se deve interpretar a lei de modo a colocá-la em choque com a Constituição Federal, dou provimento ao recurso.”
Ministro José Delgado:
“A legislação fiscal aplicada à Zona Franca de Manaus há de ser interpretada com base no princípio que a inspirou: o de incentivar o desenvolvimento econômico e social da região, com a concessão de incentivos às empresas que nela estão instaladas e às que, embora sediadas fora da região, mantêm negócios com seus vários seguimentos.”
Ministro Teori Zavascki:
“Nos termos do art. 40 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias — ADCT, da Constituição de 1988, a Zona Franca de Manaus ficou mantida ‘com suas características de área de livre comércio, de exportação e importação, e de incentivos fiscais, por vinte e cinco anos, a partir da promulgação da Constituição’. Ora, entre as ‘características’ que tipificam a Zona Franca destaca-se esta de que trata o art. 4º do Decreto-lei 288/67, segundo o qual ‘a exportação de mercadorias de origem nacional para consumo ou industrialização na Zona Franca de Manaus, ou reexportação para o estrangeiro, será para todos os efeitos fiscais, constantes da legislação em vigor, equivalente a uma exportação brasileira para o estrangeiro’. Portanto, durante o período previsto no art. 40 do ADCT e enquanto não alterado ou revogado o art. 4º do DL 288/67, há de se considerar que, conceitualmente, as exportações para a Zona Franca de Manaus são, para efeitos fiscais, exportações para o exterior. Sendo assim, ao estabelecer que as receitas de vendas para o exterior são isentas da COFINS, não há dúvida de que o art. 7º da Lei Complementar 70/91 inclui também as vendas realizadas para a Zona Franca de Manaus. A isenção existe, portanto, e, como se vê, não decorre de aplicação analógica ou extensiva da lei, mas da sua interpretação sistemática.”
Consonância?
Em outras palavras, a ratio decidendi sobre a qual se fundamentou o julgado em questão pode ser extraída a partir de uma interpretação sistemática e teleológica das normas exonerativas: “incentivar o desenvolvimento econômico e social da região”, “característica fundamental” da Zona Franca de Manaus. Esse entendimento foi incorporado e reforçado no E. tribunal, passando a ser adotado por todos os demais ministros que compõem as turmas de direito público do Superior Tribunal de Justiça, que o reproduzem há mais de 20 anos.
Nesse sentido, questiona-se: a exigência de PIS e Cofins em importações realizadas na ZFM estaria em consonância com tal ratio decidendi? Qual é o método interpretativo que permite concluir por tal incidência, e que se sobrepõe à interpretação sistemática e teleológica de tais normas, interpretação esta que norteou os julgados do Superior Tribunal de Justiça a respeito de PIS e Cofins? Há alguma premissa, alguma justificação suficientemente robusta que permita concluir pela incidência de PIS e Cofins em tais operações, em detrimento da não-incidência?
Essa justificação seria ainda mais relevante no caso, em se tratando de tema analisado reiteradamente pelo E. Superior Tribunal de Justiça, e de maneira diametralmente oposta àquela então sustentada pela Fazenda Nacional e ora aderida pelas turmas de direito público.
Não é possível existir justificação que permita tal conclusão do acórdão proferido no julgamento do Recurso Especial nº 2.052.526/AM – inaugural do posicionamento contrário ao dos contribuintes — que não desenvolve fundamentos para refutar a aplicação da mesma ratio decidendi à discussão, já que a decisão foi calcada em uma diferença entre a materialidade das espécies tributárias colocadas em análise:
“O PIS e a COFINS importação são contribuições instituídas por meio da Lei n. 10.864/04, cujo fato gerador é distinto do PIS e da COFINS incidentes sobre o faturamento. Trata-se de contribuições devidas pelo importador de produtos e serviços do exterior, de modo que não há que se falar em equiparação à exportação para fins de isenção.”
Por que a materialidade do PIS e da Cofins permitiria concluir pela aplicação da norma exonerativa, e a materialidade do PIS-Importação e da Cofins-Importação não o permitiram? O aspecto de equiparar as operações de venda interna a “exportações” — meio pela qual se cumpre a finalidade da própria ZFM – prevalece em relação à própria finalidade, em si, a justificar seu afastamento?
Não se olvida que, mesmo diante da aproximação do Direito brasileiro com o common law e com o sistema de precedentes, os julgadores não são obrigados a seguir a ratio decidendi que justificou decisões pregressas, ainda que do mesmo órgão jurisdicional a que se vinculam (exceto, evidentemente, na hipótese dos precedentes vinculantes a que se sujeitam, nos termos do artigo 927 do Código de Processo Civil).
Ainda assim, a observância às razões de decidir de julgados anteriores é uma das condições sine qua non para se concretizar a segurança jurídica insculpida como direito fundamental na Constituição Federal, como ensina o ministro Luiz Fux:
“A jurisprudência assumiu o destaque característico dos sistemas da família da common law, vinculando juízes e tribunais, reclamando, por seu turno, a perfeita adequação da causa ao precedente (distinguishing), a possibilidade de sua modificação (overruling), bem como a modulação temporal da modificação jurisprudencial no afã de evitar a surpresa judicial, interdição que conspira em prol da prometida segurança jurídica, eclipsada em cláusula pétrea constitucional. Essa força emprestada à jurisprudência viabiliza, também, a previsibilidade das decisões, respeitando as justas expectativas dos jurisdicionados.”
A esse respeito, vale citar a lição do jurista Neil MacCormick [1] quanto ao “requisito da coerência” (corolário da segurança jurídica), que supostamente deveria fundamentar a interpretação normativa, não só dos tribunais, mas de qualquer aplicador do direito:
“E a pergunta permanece: deveria o caso em foco ser decidido da mesma forma que o precedente (ordenando-se a revelação), considerando-se a diferença significativa do relacionamento entre o querelado e os terceiros não identificados nos dois casos? Há dois níveis de resposta: em primeiro lugar, quais eram as razões de princípio subjacentes pelos quais a decisão do precedente estava justificada? (Ou quais razões dessa natureza podem justificavelmente ser imputadas?) Se essas considerações de princípio justificatório se aplicam com eficácia semelhante às circunstâncias diferentes do caso em foco, então pelo menos o argumento a partir da coerência é aplicável. E nesse caso, em segundo lugar, é essa uma conduta boa a seguir em (a) em si e (b) nas circunstâncias do caso perante o tribunal? Essa é naturalmente uma questão para avaliação judicial ao longo das linhas examinadas anteriormente, e essa avaliação é, em última análise, o fator decisivo. A partir dessa perspectiva abstrata, pode-se dizer que o primeiro nível é mais ou menos cognitivo; o segundo, mais ou menos avaliatório, embora, como releva um exame cuidadoso do parecer do juiz Graham – e essa observação é essencialmente geral – na argumentação concreta da vida real os dois níveis se encontrem irremediavelmente entrelaçados.”
A partir de tais ensinamentos, reformulamos o questionamento feito em parágrafo anterior: os fundamentos subjacentes que justificaram as decisões do E. STJ a respeito da inexigência de PIS e Cofins em relação às operações destinadas à Zona Franca de Manaus são inaplicáveis ao PIS-Importação e à Cofins-Importação? Em caso positivo, por quais motivos?
Com a devida vênia, não entendemos que essa contraposição tenha sido satisfatoriamente desenvolvida no julgamento do Recurso Especial nº 2.052.526/AM (e nos que se seguiram após tal julgado, citando-o como precedente).
Ao contrário, ao refutar o entendimento anterior em razão de um aspecto de materialidade dos tributos, nos parece faltar ao posicionamento atual do Superior Tribunal de Justiça densidade suficiente para justificar a correção de tal decisão e, mais do que isso, observância ao princípio da coerência que deveria nortear sua atuação, razão pela qual reputamos adequado e coerente, sob o ponto de vista sistemático, o reconhecimento da aplicação da norma exonerativa à espécie.
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[1] MacCormick, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
FONTE: CONSULTOR JURÍDICO – POR MARCUS LIVIO GOMES E VICTOR TRICANICO SOARES