O STJ recolocou nos trilhos o tratamento a ser dado aos créditos afiançados na recuperação judicial, reforçando a importância dos mecanismos legais de reestruturação de dívidas
No meio empresarial brasileiro, sabe-se da relevância das fianças bancárias para fortalecimento do mercado, na qualidade de produto bancário de notória liquidez e segurança. Por meio da fiança bancária, a instituição financeira, mediante a cobrança de uma taxa, assume o papel de fiador, no lugar da pessoa física (normalmente sócio ou acionista da empresa). No contexto de uma recuperação judicial (RJ), surgem dúvidas sobre o tratamento dos créditos do fiador quando este, após ser acionado para honrar a fiança, passa a ser credor de uma empresa em RJ.
Juridicamente, a situação é muito simples: ao pagar a dívida, o fiador assume o lugar do credor original no processo de RJ nas mesmas condições e privilégios que o outro tinha; privilégios esses atrelados às circunstâncias materiais da obrigação/crédito afiançado. Esse ponto é de extrema relevância, pois a natureza do crédito pode conferir mais ou menos poderes aos credores para cobrança de valores em aberto. Pela Lei de Recuperação Judicial e Falência (LFR), por exemplo, se a obrigação é constituída após o pedido de RJ de uma empresa, esse credor é chamado “extraconcursal”, significando que ele conserva, a princípio, o direito de execução em face da empresa em RJ. Por sua vez, se a obrigação é constituída antes, o crédito deverá necessariamente ser pago nos termos de um plano de recuperação judicial negociado com a coletividade de credores. No caso das cartas fianças bancárias, então, se o credor original se submetia aos efeitos da RJ, o fiador assumiria a posição de credor nessas mesmas condições.
Contudo, o tema passou a gerar insegurança jurídica em 2020, quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) conferiu critérios distintos para classificar o crédito do fiador. Em linhas gerais, o STJ entendeu que o fiador não assumiria um crédito já existente quando da honra da fiança, mas sim uma espécie de “novo” crédito. Por isso, se o fiador honrasse a fiança no curso de um processo de RJ, o crédito por ele assumido seria considerado “extraconcursal” com todos os privilégios de cobrança decorrentes dessa classificação; privilégios esses que o credor original não possuía. Essa interpretação contradizia não só a dinâmica de classificação de créditos prevista na LFR, mas também regras básicas do Código Civil que estabelecem a fiança como uma obrigação acessória e definem que o fiador deve substituir o credor original, sem alterar a natureza do crédito.
Essa posição do STJ preocupou o mercado. Afinal o maior recorte de endividamento de empresas em RJ é justamente de dívidas garantidas por fianças, dada a sua grande utilização por instituições financeiras. Além disso, é fato que os credores originais costumam acionar a fiança já no curso da RJ, após declaração de vencimento antecipado de seus contratos de financiamento em razão do próprio pedido de recuperação (cláusula comum nesse tipo de contrato, apesar de questionável). Assim, parcela significativa do endividamento da empresa em RJ era excluída do seu processo de reestruturação, agravando a crise empresarial em muitos dos casos.
Felizmente, em agosto, o STJ revisou esse entendimento. O ministro Ricardo Villas Bôas Cueva destacou que, ao ser paga a fiança, o fiador apenas substitui o credor original, sem criar nova relação jurídica com o devedor. Assim, se o crédito garantido pela fiança se submetia aos efeitos da RJ, o fiador assumirá um crédito também sujeito à RJ, independentemente do momento em que honra a fiança.
O ministro enfrentou o cerne da inconsistência da posição que vinha prevalecendo sobre esse tema, destacando, em seu voto, ser um contrassenso admitir que diferentes fiadores de uma mesma dívida possuam tratamento distinto no universo da RJ, apenas por terem honrado seus compromissos em datas diversas. Com isso, restabelece que a natureza do crédito não está atrelada à pessoa do credor que assume a sua titularidade em função da honra da fiança, tampouco ao momento em que há o seu pagamento pelo fiador, mas sim está vinculada aos direitos e privilégios do próprio crédito que já existe e é apenas transferido a outro credor. A correção de rota é essencial para coibir o que, antes, representava verdadeiro convite aos credores para sempre escolherem chamar a fiança após o pedido de RJ, já que, nessa situação, o credor principal seria pago pelo fiador, e esse último manteria os privilégios de cobrança do crédito fora da RJ.
Pode parecer uma vantagem à primeira vista aos credores, mas ela é só aparente mesmo. A multiplicação de cartas fianças e o aumento do pool de credores capazes de cobrar suas dívidas milionárias apenas agrava o problema da empresa em crise, sufocando o seu caixa, minando sua produção, esvaziando estoques, comprometendo relações comerciais e, em última instância, culminando até mesmo na liquidação de empresa outrora viável. Nesse cenário, quem tem muito a perder são os próprios credores, agora arrastados a uma forma de pagamento legal que raramente é compensadora.
Por isso, a importância de o STJ ter recolocado nos trilhos o tratamento a ser dado aos créditos afiançados na RJ, reforçando a importância dos mecanismos legais de reestruturação de dívidas mediante a efetiva negociação coletiva entre a empresa em crise e os seus credores, de modo a alcançar solução comum a um problema que, veja-se, afeta a todos.
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FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR MARIANA SERACHIANI CLEMENTE E NATHALIA NUNES