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POSSÍVEIS IMPACTOS PENAIS DA REFORMA

25 de outubro de 2024

É necessário que o legislador esteja atento para os desdobramentos penais e processuais penais de suas escolhas.

No âmbito da reforma tributária, a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) deverão observar as mesmas regras em relação a fatos geradores, bases de cálculo, hipóteses de não incidência etc. Para manter a autonomia federativa, porém, a CBS é de competência federal e o IBS é de competência de Estados, do Distrito Federal e dos municípios. Por isso, o Projeto de Lei Complementar (PLP) 68/24 dispõe que caberá ao Poder Executivo da União editar o regulamento da CBS, enquanto o Comitê Gestor do IBS (CG-IBS), composto por representantes de Estados, Distrito Federal e municípios, editará o regulamento do IBS. Assim, caberá ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) o julgamento de questões relativas à CBS e ao CG-IBS as relativas ao IBS.

Isso quer dizer que é possível que tenhamos decisões distintas sobre a mesma matéria, já que o contribuinte poderá ter lavrado contra si dois lançamentos e dois autos de infração relativos ao IBS e à CBS. Na prática, dois processos administrativos distintos a respeito de tributos “idênticos” poderão coexistir e não é difícil imaginar que sobrevenham manifestações contraditórias do Carf e do CG-IBS, motivando a judicialização da discussão.

Para lidar com esse problema, o PLP 68/2024 propõe a criação de duas instâncias de harmonização: o Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias e o Fórum de Harmonização Jurídica das Procuradorias. Já o PLP 108/24 prevê que caberá ao CG-IBS uniformizar a interpretação da legislação do IBS, decidir o contencioso administrativo desse imposto e coordenar a fiscalização e as ações de cobrança administrativa e judicial.

Essa sistemática tem potencial para causar impactos importantes na esfera penal, pois, considerando a atual lógica de interação entre o Fisco e as autoridades de persecução criminal – regida primordialmente pela Súmula Vinculante 24 -, uma “derrota” na esfera administrativa poderá resultar tanto no encaminhamento do caso para discussão em âmbito civil-tributário quanto na instauração de investigação para apurar eventual prática criminosa.

Em matéria de direito penal tributário, o crime pressupõe um ilícito tributário, a sua caracterização depende, em um primeiro momento, da verificação do descumprimento de uma obrigação tributária. Isso significa dizer que, para o enquadramento da conduta como crime tributário, é essencial saber qual é o tributo devido, se ele é realmente devido, e /ou quais são as obrigações acessórias previstas nas leis tributárias que foram descumpridas dolosamente pelo agente. Em outras palavras, a apuração do crime tributário sempre estará atrelada a questões jurídico tributárias submetidas aos órgãos de administração tributária.

Como a CBS e o IBS observarão as mesmas regras em relação a fatos geradores, bases de cálculo e hipóteses de não incidência, a existência de duas instâncias analisando os mesmos fatos jurídico-tributários terá diversos impactos penais.

Dentre eles destacamos os seguintes: a) a prevalecer o entendimento da Súmula Vinculante 24, a duplicidade de procedimentos administrativos condicionantes da possibilidade de exercício da pretensão punitiva poderá criar ainda maior distância temporal entre a prática do fato criminoso e sua apuração e punição; b) também em razão da Súmula Vinculante 24, a duplicidade de procedimentos administrativos poderá gerar diferentes momentos de conduta, de consumação do crime e de início de contagem do prazo prescricional dos delitos decorrentes dos mesmos fatos jurídico-tributários; c) a possível contradição entre enquadramentos e decisões administrativas sobre o mesmo fato jurídico-tributário com repercussões penais poderá ter impactos não só na configuração subjetiva do ilícito penal (erro), como processuais: o juiz penal terá de “escolher” uma dessas interpretações ou terá de aguardar a uniformização?; d) como a CBS afeta os interesses da União e o IBS os dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, o mesmo fato jurídico-tributário afetará, invariavelmente, patrimônios públicos de diversa titularidade, sugerindo possível discussão sobre a prática de dois ou três crimes, em concurso formal; e) o mesmo fato jurídico-tributário com repercussões penais poderá estar sujeito, ainda que temporariamente, a dupla investigação: pela Justiça Estadual, para o IBS, pela  Federal, para a CBS; duplicidade que somente poderá ser resolvida por meio de julgamento de exceção de incompetência (pelos tribunais) ou conflito de competência (pelo Superior Tribunal de Justiça), o que poderá atrasar ainda mais a solução do litígio; f) por fim, o mesmo fato jurídico-tributário poderá ser objeto de distintas ações antixacionais em razão da duplicidade de procedimentos administrativos e eventual decisão de suspensão da exigibilidade do crédito tributário ou de anulação em relação a apenas um dos procedimentos administrativos poderia ensejar decisões judiciais conflitantes e impactos distintos perante a justiça criminal.

Nada disso macula o mérito da reforma e dos projetos de regulamentação, mas é necessário que o legislador esteja atento para os desdobramentos penais e processuais penais de suas escolhas. Na matéria aqui tratada, eles são abrangentes e inspiram cuidados.

Fernanda Vilares, Heloisa Estellita, Thaís Tereciano e Vinícius Canesin são, respectivamente, coordenadoras e pesquisadores da equipe da pesquisa “Evasão Fiscal: uma proposta legislativa para debate”, do Núcleo de Direito Penal e Processual Penal da FGV Direito SP.

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR FERNANDA VILARES E HELOISA ESTELLITA

 

 

 

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