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TAXAÇÃO A MULTINACIONAIS NOS MOLDES DA OCDE PODE RENDER AO BRASIL ATÉ R$ 18,8 BI

3 de outubro de 2024

Cálculo é do economista Bráulio Borges; assunto está sendo estudado no governo e pode ‘avançar rápido’.

Em estudo pelo governo, uma nova tributação sobre o lucro de grandes multinacionais que operam no Brasil poderia render arrecadação federal extra entre R$ 16,4 bilhões e R$ 18,8 bilhões anuais.

Os cálculos são de Bráulio Borges, economista da LCA Consultores e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre). Esse seria o impacto do chamado Global Anti-Base Erosion Rules (GloBE, na sigla em inglês) ou simplesmente pilar 2 do acordo tributário global conduzido pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e integrado por mais de 140 países. O pilar 2 prevê a tributação corporativa mínima sobre lucro de 15% para multinacionais com faturamento superior a € 750 milhões por ano.

O governo federal ainda não tem estimativa definida da receita que pode ser auferida, mas fonte próxima à Secretaria da Receita Federal diz que o assunto já está sendo estudado e a ideia é “avançar rápido com o imposto mínimo de 15% do pilar 2”. Um texto está sendo preparado para ser enviado ao Congresso ainda este ano, para não “deixar dinheiro na mesa para outros países”. Caso uma tributação brasileira nesse sentido não seja estabelecida, as multinacionais deverão pagar aos países das matrizes o que poderia ser recolhido no Brasil, observa a fonte.

O conjunto de ações para tributação mínima unificada inclui o chamado pilar 1, que também pode trazer elevação de arrecadação ao Brasil.

Ricardo Galendi, tributarista do Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Shoueri, explica que o objetivo do pilar 2 é criar um piso de alíquota efetiva de 15% para a competição fiscal internacional. O Brasil, como importador de capital, diz, tem em território farmacêuticas, indústrias químicas e automobilísticas, entre outras empresas estrangeiras que atuam no país. A alíquota nominal brasileira sobre o lucro das empresas chega a 34%, considerando Imposto de Renda (IR) e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), mas o nível de tributação, aponta, pode variar por setores, considerando deduções como as de subvenções para investimento e regimes como o da Zona Franca de Manaus.

“Tudo isso pode, eventualmente, em alguns casos, levar a alíquota efetiva para baixo dos 15%. Se o Brasil não fizer nada, o país sede dessa empresa multinacional, como Alemanha ou França, por exemplo, pode capturar esse lucro subtributado no Brasil.” Isso vira receita tributária no país europeu, caso ele tenha em vigor uma regra de inclusão de rendimentos (IIR, na sigla em inglês para Income Inclusion Rule), conforme o pilar 2.

“O GloBE traz um mecanismo de defesa, digamos, do país hospedeiro do investimento, contra a aplicação da regra de inclusão de rendimentos”, diz Galendi. O mecanismo é o QDMTT, na sigla em inglês para Imposto Complementar Mínimo Doméstico Qualificado. O governo está estudando uma proposta justamente para a criação de um QDMTT no Brasil, diz fonte próxima à Receita.

Borges ressalta que em relatório de janeiro deste ano a OCDE divulgou que, de forma agregada, o pilar 2 pode resultar em receita adicional de US$ 155 bilhões a US$ 192 bilhões anuais, considerando a tributação corporativa sobre lucro em países que não são paraísos fiscais.

A OCDE não faz uma estimativa de arrecadação por país, observa Borges. “Eles fazem por grupos de países classificados por nível de renda. O Brasil é considerado um país de renda média alta. Para esse grupo, a estimativa é de ganhos em torno de 5% a mais em relação ao que esses países estavam arrecadando em tributos corporativos sobre lucro na média de 2017 a 2020.” Para cálculo do potencial de arrecadação no Brasil do pilar 2, diz ele, os 5% foram considerados sobre os 2,75% de arrecadação média efetiva de IR e CSLL como proporção do PIB nesse período de quatro anos. No período 2021-2023 a proporção subiu para 3,86%, sendo de 3,68% em 2023.

A nova tributação, porém, deve enfrentar resistência. O QDMTT, diz Galendi, pode ser estabelecido no Brasil por lei ordinária, com alteração na legislação do Imposto de Renda, mas pode gerar muitas discussões de caráter constitucional. “Porque em alguma medida a tributação pode mitigar, por exemplo, o benefício da Zona Franca de Manaus ou de subvenção de investimentos, e é natural que tenha alguma reação por parte dos contribuintes, do ponto de vista judicial.” Se esse imposto complementar for declarado inconstitucional no Brasil, o país não atinge, no caso, o piso da competição fiscal internacional estabelecido pelo acordo e a receita tributária será capturada por outro país, aponta o tributarista.

O imposto complementar em si também promete ser alvo de discussão. Imaginava se inicialmente, diz, que o QDMTT seria um imposto com o qual o país anfitrião neutralizaria a inclusão de rendimentos pelo país que sedia o grupo multinacional.  “Mas na minúcia o QDMTT não opera estritamente como imposto neutralizador, explica Galendi, autor de tese de doutorado sobre o GloBE defendida na Universidade de Colônia (Alemanha) e premiada este ano com a EATLP Tax Thesis Award.

Existem, aponta Galendi, exigências para qualificação do QDMTT que o tornam mais oneroso que a tributação que seria paga de outra forma, no país da matriz, por exemplo, na regra do IIR, o imposto da regra de inclusão de rendimentos.

As Orientações Administrativas, integrantes do arcabouço do GloBE, estabelecem que os países anfitriões, exemplifica Galendi, exijam QDMTT de 100% do imposto complementar apurado de acordo com as regras GloBE, sem considerar as participações societárias detidas pelo grupo multinacional.

Isso, diz o tributarista, pode gerar distorções, por exemplo, no caso de uma subsidiária no Brasil que seja controlada por um grupo multinacional alemão, o qual detém 60% de seu capital social. No exemplo, os outros 40% são detidos por acionistas minoritários que não fazem parte do grupo multinacional. Neste caso, o IIR na Alemanha seria de 60% do imposto complementar apurado pelas regras do GloBE, considerando a participação de 60% da holding na subsidiária brasileira, diz Galendi. O QDMTT cobrado no Brasil seria maior, de 100% do imposto complementar apurado segundo o GloBE, explica o tributarista.

“Antes de tomar carona num programa da OCDE há muitos passos” — Luciana Galhardo

Galendi lembra que o próprio texto das Orientações Administrativas reconhece a incidência mais gravosa do QDMTT em relação ao IIR, o imposto da regra de inclusão. O texto, ressalta, aponta que, em alguns casos, a aplicação do QDMTT “resultará em uma carga tributária maior do que a carga tributária que de outra forma teria sido imposta sob as Regras GloBE”. Mesmo em um cenário de ampla adoção do GloBE por outros países, avalia ele, a cobrança de um QDMTT prejudica a capacidade de atração de investimentos, porque a tributação na jurisdição anfitriã será, na verdade, maior do que aquela incidente a partir de uma IIR.

O Brasil não é somente anfitrião de multinacionais, mas também possui grandes grupos econômicos que atuam internacionalmente. Nessa ótica do Brasil como exportador de capital, destaca Galendi, o pilar dois traz também uma oportunidade que poderia reduzir a carga tributária sobre lucros no exterior das multinacionais brasileiras.

Essas grandes companhias, observa Galendi, já estão sujeitas atualmente às regras de Tributação em Bases Universais (TBU), que tributam lucros apurados no exterior.  O pilar 2, defende, traz uma oportunidade para o Brasil de rever as regras de tributação em bases universais e trocá-las por uma regra de inclusão de rendimentos – o IIR – em conjunto com um bom desenho de tributação com base na regra CFC (sigla em inglês para Empresas Estrangeiras Controladas), aderindo à prática internacional.

“As regras CFC capturam rendimentos passivos, sujeitos a uma tributação muito baixa. As regras de TBU brasileira capturam tudo. Se uma multinacional brasileira tem um fábrica, ela estará sujeita às regras de TBU mesmo que a companhia esteja efetivamente realizando investimentos num outro país. A regra de inclusão de rendimentos é menos restritiva, menos onerosa do que a que temos como regra de TBU brasileira hoje. Do ponto de vista de política tributária essa troca seria ideal, mas a mudança poderia reduzir a arrecadação”, diz Galendi.

Segundo fonte próxima à Receita Federal, o governo não pretende ainda revisar de forma estrutural a TBU atual. A ideia é manter o atual regime para ter mais tempo para trabalhar em modernização, diz a fonte.

Borges destaca que o Brasil já tem caminhado para o aperfeiçoamento de legislação que busca a tributação perdida com o chamado “profit shifting”, quando as companhias multinacionais reduzem sua carga tributária movendo a apuração de lucro de países com alta tributação para jurisdições com menor carga tributária ou para paraísos fiscais. No ano passado, lembra, foi aprovada uma nova legislação de preços de transferência que entrou em vigor este ano.

Para ele, o trabalho divulgado em 2022 por Gabriel Zucman, professor da Universidade da Califórnia em Berkeley (EUA), entre outros autores, mostra o potencial de arrecadação brasileira no combate ao “profit shifting”. O desvio de lucros calculado por eles para o Brasil em 2019, período mais recente da análise, foi de US$ 9,1 bilhões, aponta Borges. “Com o câmbio atual, é algo perto de R$ 50 bilhões, o que seria o limite que se poderia recuperar com essas medidas”. diz, referindo-se aos preços de transferência e ao acordo da OCDE. As regras de preços de transferência tentam combater o uso de paraísos fiscais ou jurisdições com tributação menor na movimentação de lucros entre empresas de um mesmo grupo econômico.

Essas regras, recorda a tributarista Luciana Galhardo, sócia do Pinheiro Neto Advogados, foram alteradas e estão agora em consonância com a OCDE. Com a alteração que passou a valer este ano, explica ela, passou a ser aplicado o chamado princípio do “arm’s lenght”, pelo qual as partes de uma transação precisam manter a imparcialidade em relação à empresa do grupo, como se teria numa relação com terceiros. Isso se deu, porém, após mais de 20 anos com uma regra “completamente diferente do mundo todo”. “Creio que o Brasil era o único país que tinha uma tributação com base em margens fixas. Mudamos nossa legislação de preços de transferência e estamos caminhando para chegar dentro dos padrões internacionais. Mudamos as regras de contabilidade.” A mudança, diz, tem acontecido gradualmente.

O país, diz Galhardo, tem muitos passos antes de chegar ao pilar 1 ou 2. “O Brasil precisa implementar a reforma na tributação sobre consumo, incorporar as novas regras de preço de transferência. Temos que corrigir a distorção entre Estados e União, que resultou em arrecadação federal reforçada em contribuição cuja receita não é dividida [com Estados]. Temos que trazer as empresas à formalização. Nossa carga tributária já chegou a níveis elevados. Há muito a fazer antes de tomar carona num programa amplo da OCDE.”

FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR MARTA WATANABE — DE SÃO PAULO

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