Ministros mantiveram decisões contrárias a dispositivos de normas do Rio e de São Paulo.
O Supremo Tribunal Federal (STF) manteve decisões de segunda instância que derrubaram a maioria dos dispositivos de leis que instituíram, em São Paulo e no Rio de Janeiro, códigos municipais de defesa do consumidor. Para os ministros, ficou constatada usurpação de competência da União e Estados para legislar sobre o tema e não haveria interesse local para justificar a edição das normas.
As decisões foram dadas em recursos das prefeituras e câmaras municipais contra decisões favoráveis obtidas por quatro entidades: a Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee), a Associação Nacional das Operadoras Celulares (Acel), a Associação Brasileira de Concessionárias de Serviços Telefônico Fixo Comutado (Abrafix) e a Federação do Comércio, de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP).
As leis municipais nº 17.109/2019 e nº 7.023/2021, de São Paulo e Rio de Janeiro, respectivamente, que são muito semelhantes, foram analisadas pelos Tribunais de Justiça (TJSP e TJRJ). Em ambos os casos, foram considerados inconstitucionais os dispositivos questionados pelas entidades de classe, o que foi mantido pelos ministros do STF.
Para o ministro André Mendonça, relator de uma das ações contra a norma paulistana, ajuizada pela Acel e Abrafix, “ainda que salutar o intento do Poder Legislativo Municipal em produzir a ampliação dos direitos do consumidor por via da Lei municipal nº 17.109, de 2019, não se pode descurar das balizas previstas nos artigos 24 e 30 da Constituição da República, que reclamam pelo atendimento ao interesse local na produção legiferante do município”.
“Verificou a Corte de origem [TJSP] que as disposições concebidas pelo município não inovam em relação ao Código de Defesa do Consumidor, pois, com abrangência ostensiva das matérias disciplinadas na lei municipal”, diz o ministro em seu voto (ARE 1471348/SP).
Em outra ação contra a lei paulistana, ajuizada pela Abinee, o relator, ministro Cristiano Zanin, afirma que “em matéria de produção e consumo, aos municípios cabe suplementar a legislação federal e estadual ‘no que couber’ (artigo 30, II, da Constituição Federal). E o que lhes cabe, pelo princípio da preponderância são os assuntos de interesse local”, diz ele, destacando que, no caso, verifica-se “ausência de interesse local prestigiado na norma”.
“Exceto o Capítulo III, que trata da Coordenadoria de Defesa do Consumidor – Procon Municipal, porquanto os municípios gozam de autonomia administrativa (artigo 18, caput, CF), competindo-lhes privativamente legislar sobre o funcionamento de seus órgãos”, acrescenta o julgador (ARE 1481521/SP).
No julgamento sobre a lei da cidade do Rio de Janeiro, em ação ajuizada pela Abinee, prevaleceu o voto da relatora, ministra Cármen Lúcia. Ela destaca que o “Supremo Tribunal Federal tem firme entendimento de que o município tem competência para legislar sobre normas de direito do consumidor quando presente o interesse local”. E lembra que, no caso, o TJRJ havia decidido que a norma “teria extrapolado a legislação federal sobre direito do consumidor, a pretexto de ampliar a proteção ali prevista” (ARE 1476622).
Em ambos os casos, foram cancelados pelos tribunais locais artigos que tratavam de práticas ou cláusulas consideradas abusivas nas relações de consumo. Entre elas, a exigência, pelo fornecedor, de dois ou mais laudos de assistência técnica para a troca de produto com defeito e o estabelecimento de limite quantitativo na venda de um produto.
Os tribunais também anularam dispositivos que tratavam da obrigatoriedade do fornecedor de disponibilizar um canal direto com o consumidor e o que exigia que toda oferta publicitária informasse prazo de entrega. Além da previsão que considerava como cláusula abusiva o envio do nome do consumidor a banco de dados e cadastros de consumidores sem notificação prévia, por envio de carta simples ou por meio eletrônico.
“Decisões são importantes para não se criar disparidades no país” — Georges Abboud
No caso de São Paulo, os desembargadores cancelaram ainda previsão de cobrança de taxa dos fornecedores pelo Procon municipal. O valor era de R$ 300 por reclamação fundamentada atendida e de R$ 750 por reclamação fundamentada não atendida.
“Os artigos [da lei paulistana] não tratavam de especificidades locais. Não havia justificativa para uma legislação municipal”, diz a advogada Roberta Feiten Silva, do Souto Correa Advogados, que defende a Abinee. De acordo com ela, essas decisões fortalecem a segurança jurídica para a atuação de fornecedores em todo o país. “A lei foi considerada abusiva por exigir, por exemplo, que a publicidade informasse prazo de entrega de mercadoria.”
Apesar de o STF já ter aceito leis estaduais e municipais envolvendo direito do consumidor, afirma Ronaldo Kochem, também do Souto Correa Advogados, nessas três ações, o entendimento foi o de que os municípios não podem legislar sem o interesse local. “Essas normas municipais contrariavam isso e foram consideradas inconstitucionais”, diz.
No entendimento do professor de Direito Constitucional da PUC-SP, Georges Abboud, as decisões foram acertadas, pois deveria haver alguma razão que justificasse normas específicas para São Paulo e Rio de Janeiro. “São importantes para não se criar disparidades no país, como de recolhimento de tributos, de custos”, afirma.
Ana Paula Locoselli Erichsen, assessora jurídica da FecomercioSP (ARE 1481901/SP), lembra que o varejo evoluiu nos últimos anos com o meio eletrônico e é preciso uniformidade de procedimentos. “Seria [a lei de São Paulo] uma barreira à livre iniciativa. A decisão do STF é um incentivo aos empresários.”
Procurada pelo Valor, a Procuradoria Geral do Município de São Paulo informou que as ações foram finalizadas (transitaram em julgado). No processo do Rio também não cabe mais recurso.
FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR ADRIANA DAVID — DE SÃO PAULO