O tema aqui abordado não é novo nessa coluna, já tendo sido objeto de pertinentes trabalhos [1], merecendo ser retomado em razão da mais recente decisão proferida pela 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no âmbito do Recurso Especial 2.135.870/SP, segundo a qual (1) o mandado de segurança em matéria tributária é mecanismo apto apenas para fins de declarar o direito à compensação em matéria tributária, ficando vedada (2) a possibilidade de migrar a sua fase de cumprimento para a instância administrativa, com o fito de lá promover a restituição em pecúnia do indébito, bem como (3) a promoção do correlato cumprimento judicial da sentença concessiva da ordem, para que tal indébito seja pago pelo ente público por meio do precatório ou de requisição de pequeno valor.
Em relação às suas conclusões, a sobredita decisão tem um único acerto e diversos erros, os quais serão apontados na sequência.
O acerto da decisão analisada: pedido de restituição administrativa não pode servir para burlar o artigo 100 da Constituição
O único acerto da decisão em cotejo está no fato de estabelecer a impossibilidade de uma sentença mandamental, que reconhece um indébito tributário, ter sua executoriedade migrada para o âmbito administrativo, ou seja, servir de fundamento para o pedido administrativo de restituição em pecúnia do valor reconhecido judicialmente. E isso se deve por uma razão muito simples: a decisão proferida nessa ação mandamental, ou mesmo em uma ação ordinária (de repetição de indébito), deve respeitar o artigo 100 da Constituição Federal, o qual estabelece um regime jurídico próprio para o cumprimento de obrigações pecuniárias pelo Poder Público decorrentes de decisões judiciais, o que se dá pela via do precatório ou requisitório, a depender do valor da condenação.
Nesse ponto, a decisão do Superior Tribunal de Justiça está em sintonia com o que já fora decidido pelo Supremo Tribunal Federal em caráter vinculante, materializado nas teses veiculadas quando do julgamento dos Temas 831 e 1.262, respectivamente:
Tema 831: O pagamento dos valores devidos pela Fazenda Pública entre a data da impetração do mandado de segurança e a efetiva implementação da ordem concessiva deve observar o regime de precatórios previsto no artigo 100 da Constituição Federal.
Tema 1.262: Não se mostra admissível a restituição administrativa do indébito reconhecido na via judicial, sendo indispensável a observância do regime constitucional de precatórios, nos termos do art. 100 da Constituição Federal.
Se nesse tocante a decisão é pertinente, como já admitimos, o mesmo não se dá na parte em que o referido decisum textualmente afirma ser incabível a fase de cumprimento de sentença em mandamus.
O primeiro erro da decisão analisada: a ultrapassada visão de processo e dos correlatos tipos pretensamente estanques de tutelas jurisdicionais
Desde o advento da 3ª fase histórica do Processo Civil [2], uma das principais bandeiras do direito processual tem sido a ideia de efetividade das tutelas jurisdicionais, o que é garantido não só por uma celeridade a todo custo do processo [3], mas pelo fato de a decisão judicial concretizar o direito material por ela tutelado para além das fronteiras formais do processo, i.e., no mundo real, no mundo fenomênico.
O valor efetividade, por sua vez, influenciou inúmeras reformas legislativas que, no âmbito do processo civil brasileiro, ganharam força a partir da Constituição de 1988 e a constitucionalização do Processo Civil [4] [5], todas elas pautadas na ideia de sincretismo processual, em que a perspectiva clássica e compartimentada de tipos de processo (conhecimento, execução e cautelar) é substituída pela ideia, mais moderna, de um único processo, com uma preponderância fluida de fases, preponderância essa que não pode ser obstáculo para o advento de uma tutela jurisdicional efetiva [6].
Logo, a clássica perspectiva de que a tutela jurisdicional promovida no writ apresenta um caráter exclusivamente declaratório, também é superada, tornando obsoleta, v.g., as súmulas 269 [7] e 271 [8], ambas do STF, as quais são indevidamente convocadas como fundamento no recurso especial 2.135.870/SP [9] [10].
Importante também destacar que tais súmulas, inclusive, são anteriores à ordem Constitucional de 1988. Em verdade, foram aprovadas em 1963, i.e., quando ainda vigente a Constituição de 1967 e o Código de Processo Civil/39, ou seja, quando as ideias de sincretismo processual e de fases do processo eram inexistentes.
Ademais, os precedentes que resultaram na edição de tais súmulas não se referem a casos havidos no ambiente de processos tributários, mas estão relacionados a casos de funcionalismo público, ou seja, em um contexto histórico e casuístico diferente do aqui analisado.
Por fim, o próprio Supremo Tribunal Federal superou, ainda que implicitamente, tais súmulas, quando do julgamento dos já referidos Temas 831 e 1.262. Embora a Corte Constitucional negue a possibilidade de restituição administrativa em pecúnia de condenações judiciais contra a Fazenda Pública, com fundamento no artigo 100 da Constituição, ela mesma estatui que em situações como essa o caminho para a efetividade dessas tutelas é o cumprimento de sentença, com expedição de precatório ou requisição de pequeno valor, o que se deu, em ambos os casos julgados pelo Supremo nos temas acima mencionados, sempre em sede de mandado de segurança.
Em outros termos, a Corte Constitucional reconhece que o mandamus não só pode ter natureza de ação cobrança como também apresentar efeitos patrimoniais pretéritos, premissas essas que são pressupostos para a conclusão pretoriana de que decisão mandamental que condena pecuniariamente a Fazenda Pública se resolve por precatório ou requisição de pequeno valor.
O segundo erro da decisão analisada: a decisão do STJ ignora os precedentes vinculantes do STF nos Temas 831 e 1.262
Para a devida compreensão das teses veiculadas nos Temas 831 (Recurso Extraordinário nº 889.173) e 1.262 (Recurso Extraordinário nº 1.420.691) do Supremo, mister se faz destacar o contexto fático dos casos que originaram tais precedentes, exatamente como acertadamente prescreve o artigo 489, § 1º, inciso V do Código de Processo Civil/2015.
No que diz respeito ao Tema 831, tratava-se de mandamus impetrado por funcionário público para reaver valores ao qual faria jus e que não teriam sido pagos pelo ente público. Uma vez concedida a ordem, por meio de sentença transitada em julgado, o impetrante requereu nos próprios autos a intimação da Fazenda para cumprir a decisão em 48 horas, sob pena de multa diária, ou seja, para pagar os valores reconhecidos judicialmente entre a impetração e o trânsito em julgado, o que foi deferido pelo juízo de primeira instância e referendado pelo tribunal local. Foi essa a situação fática analisada pelo Supremo Tribunal Federal que, ciente de que o caso se tratava de um mandado de segurança, concluiu que a satisfação dessa obrigação deveria respeitar o artigo 100 da CF e cujo voto do relator, ministro Luiz Fux, assim frisou:
“Com efeito, é assente a jurisprudência desta Corte no sentido de que os pagamentos devidos pela Fazenda Pública estão adstritos ao sistema de precatórios, nos termos do que dispõe o artigo 100 da Constituição Federal, o que abrange, inclusive, as verbas de caráter alimentar, não sendo suficiente a afastar essa sistemática o simples fato de o débito ser proveniente de sentença concessiva de mandado de segurança” (grifo do colunista).
Está expresso no voto: o fato de o instrumento processual utilizado ser um writ não impede a submissão do cumprimento da obrigação pelo ente público ao regime do precatório ou do requisitório. Aspecto esse que, obrigatoriamente, enseja a fase de cumprimento de sentença, “não sendo suficiente a afastar essa sistemática o simples fato de o débito ser proveniente de sentença concessiva de mandado de segurança”.
Por sua vez, o caso veiculado no tema 1.262 era fruto de um mandado de segurança que tinha por objetivo ver reconhecido o direito líquido e certo de suspensão do recolhimento da Taxa Siscomex pela forma majorada (Portaria do Ministério da Fazenda nº 257/2011), bem como o direito à compensação ou restituição administrativa dos valores indevidamente recolhidos nos cinco anos anteriores à impetração.
Nessa oportunidade, também em sede mandado de segurança (frise-se), o Supremo Tribunal Federal reconheceu a impossibilidade de restituição administrativa em pecúnia do indébito, sob pena de burla ao artigo 100 da CF, decidindo, por seu turno, que cabia ao impetrante compensar administrativamente o seu indébito ou ser ressarcido mediante precatório ou requisitório, o que, novamente, desemboca uma fase de cumprimento de sentença.
Convém frisar que em ambos os casos o Supremo, em mandado de segurança, reconheceu que a repetição de um indébito implica a expedição de precatório ou requisição de pequeno valor e, em assim fazendo, não teve como escapar da conclusão pela necessidade de instalação da fase de cumprimento de sentença. Isso porque, é impossível promover a expedição de precatório/requisitório sem que haja cumprimento de sentença [11].
É bem verdade que nos precedentes que implicaram nos temas acima citados, a posição aqui defendida decorre de uma consequência lógica da conclusão alcançada pelo Supremo, i.e., de que para reaver seu indébito o impetrante deverá se sujeitar ao regime do artigo 100 da CF, já que não há uma manifestação tratando diretamente do cabimento do cumprimento de sentença em mandado de segurança.
Tal afirmação, todavia, foi textual e diretamente posta pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 250/DF. Nessa oportunidade, novamente convocado a tratar da (im)possibilidade de ressarcimento administrativo em pecúnia nas hipóteses de condenação do ente público a devolver indébitos tributários reconhecidos judicialmente, o Pretório Excelso, por unanimidade de votos, fazendo expressa menção ao Tema 831 (Recurso Extraordinário 889.173), reforçou sua posição quanto à necessidade de se respeitar o disposto no artigo 100 da CF, momento em que, por meio de voto da relatora, ministra Cármen Lúcia, expressamente prescreveu:
“…voto pela procedência da presente arguição de descumprimento de preceito fundamental, para afirmar a necessidade de uso de precatórios no pagamento de dívidas da Fazenda Pública, independente de o débito ser proveniente de decisão concessiva de mandado de segurança, ressalvada a exceção prevista no § 3º do art. 100 da Constituição da República (obrigações definidas em leis como de pequeno valor).” (grifo do colunista).
Do excerto acima transcrito, resta claro que o Supremo faz questão de destacar que, independentemente do instrumento processual empregado, i.e., mesmo em casos de impetração de mandado de segurança, havendo a condenação da Fazenda Pública para devolver dinheiro ao autor de uma demanda, tal devolução deverá se dar por meio de cumprimento de sentença, de modo a se respeitar o disposto no artigo 100 da CF.
Não há dúvida, portanto, que o Supremo Tribunal Federal admite o cumprimento de sentença em mandamus, por meio de precedente vinculante (artigo 927, inciso I do Código de Processo Civil), e que o Superior Tribunal de Justiça, ao decidir nos termos do recurso especial n. 2.135.870/SP se contrapôs a tal orientação.
Conclusão
Seguir com o entendimento exarado pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 2.135.870/SP de que é incabível cumprimento de sentença em mandado de segurança implica, em última análise, o seu indevido apequenamento como ação constitucional, cuja interpretação deveria se sujeitar à regra da máxima efetividade, além de resultar em uma tutela jurisdicional inefetiva, já que incapaz de concretamente resolver a lide sobre a qual se debruça.
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[1] Vide:
https://www.conjur.com.br/2021-dez-26/processo-tributario-mandado-seguranca-feitos-patrimoniais-preteritos/
https://www.conjur.com.br/2023-abr-02/processo-tributario-mandado-seguranca-efeitos-patrimoniais-preteritos-parte/
https://www.conjur.com.br/2023-out-01/processo-tributario-mandado-seguranca-hora-superar-sumulas-269-271__trashed/
[2] Cunhada como fase instrumentalista ou teleológica. Nesse sentido: DINAMARCO, Cândido Rangel. Instrumentalidade do processo. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 22.
[3] A efetividade do processo vai muito além de celeridade e duração razoável do processo.
[4] Por todos: BUENO, Cássio Scarpinella. Curso sistematizado de Direito Processual Civil. v. 1, 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 116.
[5] Algumas das mais relevantes foram aquelas veiculadas pela Lei n. 8.952/94, que veiculou o instituto da tutela antecipada, e pela Lei nº 11.232/2005, que introduziu o procedimento de cumprimento de sentença no ordenamento jurídico nacional.
[6] Aliás, tratando de sincretismo e efetividade, o teor da Súmula 461 do STJ é um bom exemplo disso, in verbis:
“O contribuinte pode optar por receber, por meio de precatório ou por compensação, o indébito tributário certificado por sentença declaratória transitada em julgado.”
[7] “O mandado de segurança não é substitutivo de ação de cobrança.”
[8] “Concessão de segurança não produz efeitos patrimoniais em relação a período pretérito, os quais devem ser reclamados administrativamente ou pela via judicial própria.”
[9] Nesse sentido, destaca-se trecho do voto do ministro Mauro Campbell, Relator do caso:
“A restituição permitida é aquela que se opera dentro do procedimento de compensação apenas já que a essa limitação se soma aqueloutra das Súmulas n. 269 e 271/STF, que vedam no mandado de segurança a possibilidade da restituição administrativa em espécie (dinheiro) ou via precatórios.”
[10] A respeito da superação das Súmulas 269 e 271 do STF remetemos o leitor e à leitora para o seguinte artigo:
https://www.conjur.com.br/2023-out-01/processo-tributario-mandado-seguranca-hora-superar-sumulas-269-271
[11] Essa mesma leitura dos precedentes pretorianos é alcançada por Danilo Monteiro Castro e Milena Martinelli:
Essa conclusão é consequência lógica dos fundamentos determinantes apontados naquele julgado: ao invés da restituição administrativa, será necessário instaurar a fase de cumprimento de sentença para, então, o pagamento acontecer via expedição de precatório, ou RPV.
(…).
Ora, se a Suprema Corte decidiu, em julgado repetitivo, que não é possível a restituição administrativa de indébito tributário fundada em decisão judicial proferida em mandado de segurança, e, principalmente, que pretensão desse jaez (recebimento em espécie daquilo que se pagou indevidamente ou a maior, antes da impetração do mandamus) demanda a instauração da fase subsequente de cumprimento de sentença, para expedição de precatório ou RPV, incontroverso que as limitações impostas nas Súmulas 269 e 271 do próprio STF não foram capazes de infirmar essa construção (In: Mandado de segurança e restituição do indébito tributário: a (in)compatibilidade ente os precedentes firmados no âmbito do STJ (REsp 1.951.855/SC) e do STF (RE 1.420.691/SP). In.: Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência [Coord. Paulo de Barros Carvalho], São Paulo: Noeses, 2023. pp. 356-357).
FONTE: CONSULTOR JURÍDICO – POR DIEGO DINIZ RIBEIRO