A rescisão de transação tributária e o consequente impedimento para novas negociações têm gerado crescente preocupação entre os contribuintes que buscam regularizar suas dívidas com a Fazenda Nacional.
O cerne do problema está na interpretação e aplicação do artigo 4º, §4º, da Lei 13.988/2020, que determina que, em caso de rescisão, o devedor fica impossibilitado de formalizar uma nova negociação por dois anos. Embora o texto legal seja explícito, a controvérsia reside na forma como o prazo é contabilizado e como a Procuradoria da Fazenda Nacional (PGFN) formaliza a rescisão, resultando em situações de incerteza e possível prolongamento indevido da sanção.
Até o final de 2023, a prática comum era que o sistema de negociações da PGFN não barrasse de imediato novas transações, mesmo diante de rescisões já registradas e houvesse demora na formalização dessas rescisões. Isso permitia que acordos descumpridos se mantivessem válidos por longos períodos, às vezes um ou dois anos além do inadimplemento. Contudo, com o início de 2024, houve uma mudança significativa: o sistema se tornou mais eficiente e integrado, identificando rapidamente transações rescindidas, notificando os contribuintes para regularização ou impugnação e, conforme previsto na legislação, bloqueando novas negociações imediatamente após a formalização da rescisão. Embora tal mudança sistemática se apresente como uma adequação necessária ao cumprimento das normas, ela expôs um problema prático relevante.
Considere-se, por exemplo, uma empresa que aderiu a uma transação tributária em 2021 e, a partir de abril de 2022, deixou de pagar três parcelas consecutivas. Em um cenário ideal, a rescisão dessa transação deveria ter sido formalizada em julho de 2022, com base no inadimplemento. No entanto, na prática, a PGFN só formalizou a rescisão em fevereiro de 2024. Nessa situação, o sistema da PGFN (Sispar) tem aplicado o bloqueio para novas negociações a partir da data da formalização, e não do inadimplemento, o que distorce o prazo real de impedimento, estendendo-o indevidamente e prejudicando contribuintes que, teoricamente, já teriam cumprido os dois anos desde o descumprimento das condições da transação. Casos como esse têm sido frequentes nas negociações.
Prazo contado a partir do inadimplemento
Defendemos que o prazo de dois anos previsto no §4º do artigo 4º da Lei 13.988/2020 deve ser computado a partir da data do inadimplemento, ou seja, do descumprimento material dos termos acordados, e não a partir da formalização da rescisão pela Procuradoria. Isso se deve ao fato de que o ato de rescisão formal possui natureza meramente declaratória, ou seja, não cria uma nova situação jurídica, mas apenas reconhece um fato preexistente — o não pagamento de três parcelas consecutivas. E os atos administrativos de eficácia declaratória são retroativos[1], de modo que seus efeitos retroagem ao momento em que se deu o descumprimento das obrigações pactuadas.
Para transações por adesão, a norma que rege a rescisão está atualmente disposta no artigo 12, inciso II, do Edital PGDAU nº 2/2024 — que, em essência, reproduz o modelo de regulamentações anteriores, como o previsto na Portaria PGFN nº 14.402/2020, por exemplo. De forma geral e abstrata, a norma aplicável, em sua hipótese, descreve o decurso de tempo qualificado pelo não pagamento do saldo devedor negociado e, em seu consequente, prevê a rescisão da transação[2].
No plano individual e concreto, a rescisão é formalizada por meio de ato administrativo do procurador responsável, que deve, necessariamente, ser congruente tanto no motivo quanto no resultado do ato administrativo. A premissa — o motivo — é o inadimplemento da obrigação de pagar três prestações consecutivas ou alternadas, o que, no exemplo mencionado, ocorreu em julho de 2022. A conclusão — o resultado — deve, logicamente, ser a rescisão da transação na mesma data.
A jurisprudência confirma essa interpretação. Decisões do TRF-4 sobre exclusão do Simples Nacional determinam que os efeitos retroagem à data da circunstância material que autorizou a norma:
TRIBUTÁRIO. SIMPLES NACIONAL. EXCLUSÃO. ATO DECLARATÓRIO. EFEITO RETROATIVO AO MÊS POSTERIOR À SITUAÇÃO EXCLUDENTE. RECOLHIMENTOS EFETUADOS NO REGIME DO SIMPLES. APROVEITAMENTO. 1. O STJ pacificou entendimento, inclusive em sede de recurso repetitivo (REsp n. 1.124.507/MG), no sentido de que o ato de exclusão do regime tributário Simples tem natureza declaratória, e como tal, retroage seus efeitos a partir do mês subsequente à data da ocorrência da circunstância excludente, nos termos do artigo 15, inciso II, da Lei nº 9.317, de 1996, tendo em vista que é obrigação do contribuinte conhecer as situações que impedem seu ingresso e permanência nesse regime. 2. A exclusão da empresa do Simples Nacional, com efeitos retroativos, impõe-lhe recolher os tributos de acordo com as normas gerais de incidência, sendo que, nessa situação, a Lei Complementar nº 123, de 2006, determina que os recolhimentos efetuados pela empresa no regime Simples Nacional devem ser aproveitados como pagamento, devendo o contribuinte recolher apenas a diferença.
(TRF-4 – AC: 50084631220114047112 RS 5008463-12.2011.4.04.7112, Relator: ALCIDES VETTORAZZI, Data de Julgamento: 06/11/2018, SEGUNDA TURMA)
Em reforço, tese firmada pelo STJ no Tema Repetitivo 341:
“Em se tratando de ato que impede a permanência da pessoa jurídica no SIMPLES em decorrência da superveniência de situação impeditiva prevista no artigo 9º, incisos III a XIV e XVII a XIX, da Lei 9.317/1996, seus efeitos são produzidos a partir do mês subsequente à data da ocorrência da circunstância excludente, nos exatos termos do artigo 15, inciso II, da mesma lei.”
Marco temporal adequado
Por analogia, situações de fato e de direito semelhantes exigem conclusões semelhantes. Portanto, as premissas e conclusões podem ser desenhadas da seguinte forma: em se tratando de ato que impede a permanência da pessoa jurídica em negociação celebrada por transação tributária, em decorrência de situação impeditiva — o não pagamento de três parcelas consecutivas —, seus efeitos são produzidos a partir do mês subsequente à data da ocorrência da hipótese rescisória.
Assim, um ato administrativo que impõe o bloqueio para novas negociações a partir de fevereiro de 2024, em vez de julho de 2022, é nulo por vício de motivo. De acordo com a Lei da Ação Popular (Lei nº 4.717/65), o ato administrativo é nulo quando inexistentes os motivos que o fundamentam, sendo considerados inexistentes os motivos “quando a matéria de fato ou de direito, em que se fundamenta o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado obtido”.
Ao estabelecer a data de fevereiro de 2024 como o marco da rescisão, o ato impõe um bloqueio indevido até fevereiro de 2026, quando a correta interpretação do §4º do artigo 4º da Lei 13.988/20 determina que o prazo de impedimento se inicie em julho de 2022, data da rescisão material. Assim, o fundamento jurídico se torna inadequado ao resultado produzido. Dado que o ato administrativo gerou um resultado incompatível com a sua própria natureza, ele é nulo.
Portanto, para garantir a correta aplicação do §4º do artigo 4º da Lei 13.988/2020, o marco temporal adequado para o início do prazo de impedimento de novas transações deve ser a data da rescisão material — o momento do inadimplemento. O ato administrativo que formaliza a rescisão, por sua natureza declaratória, apenas reconhece a situação preexistente, e seus efeitos retroagem ao momento do descumprimento do acordo. Por fim, sobre a distinção entre rescisão material e rescisão formal, a própria PGFN já abordou essa questão de maneira inequívoca no Parecer Normativo/PGFN nº 496/2009.
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[1] “Retroativos por natureza são, regra geral, os atos que têm eficácia declaratória, porque tais atos não fazem senão certificar o estado precedente, de fato ou de direito, sem nada criar ou modificar. Retroativos são, além desses, os atos interpretativos de atos administrativos precedentes, como os de anulação, de revogação, de convalidação, de conversão (…)”. (Zanobini, 1950, apud Cretella Júnior, J. Retroatividade do Ato Administrativo, 1977, p. 4).
[2] “Art. 12. Implica rescisão da transação:
I – o descumprimento das condições, das cláusulas, das obrigações previstas neste Edital ou dos compromissos assumidos nos termos do art. 4º;
II – o não pagamento de três prestações consecutivas ou alternadas do saldo devedor negociado nos termos da proposta de transação aceita;
III – a constatação, pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, de ato tendente ao esvaziamento patrimonial do sujeito passivo como forma de fraudar o cumprimento da transação, ainda que realizado anteriormente a sua celebração;
IV – a decretação de falência ou de extinção, pela liquidação, da pessoa jurídica transigente;
V – a inobservância de quaisquer disposições previstas na Lei de regência da transação.
Parágrafo único. Na hipótese de que trata o inciso IV, no prazo para apresentação de impugnação, é facultado ao sujeito passivo aderir à modalidade de transação proposta pela PGFN, desde que disponível, ou apresentar nova proposta de transação individual.”
FONTE: CONSULTOR JURÍDICO – POR EDILTON HENRIQUE RODRIGUES