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O CARF E A PEJOTIZAÇÃO

19 de setembro de 2024

Entre a liberdade de contratação e o sistema de custeio previdenciário.

O Carf tem sido palco de frequentes embates em torno do tema da “pejotização”. E não poderia ser diferente. As transformações das relações laborais e o futuro do mercado de trabalho estão entre os temas mais relevantes da atualidade.

A pejotização, ou o uso de pessoas jurídicas para atividades tipicamente atribuídas a empregados, levanta preocupações sobre a segurança futura, como aposentadoria digna e uma posição adequada no mercado de trabalho para os filhos.

Nos processos administrativos relacionados à pejotização julgados pela 2ª Seção do Carf, são examinadas diversas questões: as características das pessoas jurídicas envolvidas, a estratégia da empresa contratante para atrair talentos, a natureza das atividades e a rotina de trabalho.

Os julgadores têm como objetivo identificar se estão presentes os elementos caracterizadores do contratado como segurado obrigatório da previdência na qualidade de empregados (pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação), previstos no art. 12, I da Lei 8.212/91. Porém, há um elemento oculto que possivelmente influencia as decisões, qual seja: a preocupação com o custeio da previdência social.

As mudanças nas relações de trabalho e a busca por menores encargos previdenciários sugerem a necessidade de uma revisão legislativa do sistema de custeio da previdência social, de modo a reequilibrá-lo. Enquanto tal mudança legislativa não vem, o sistema de custeio previdenciário brasileiro vai sendo corrompido, pois está centrado num retrato de mercado de trabalho que não existe mais, aquele majoritariamente composto pelo trabalho subordinado ou autônomo formalizado.

Esta situação faz crescer a sensação de que o STF, em sua “interpretação econômica do direito”, olhando para o mercado de trabalho das big techs, pode ter negligenciado a proteção do modelo de previdência social idealizado na CR/88 e a potencial precarização do trabalho. Entretanto, a transformação da política fiscal e previdenciária não cabe ao STF, mas sim ao legislativo. E sabemos como reformar a previdência social é uma medida de grande complexidade política.

Ciente da complexidade social, política e econômica do tema, o Carf continuará a analisar os processos administrativos pautado pelas decisões vinculantes do STF, ignorando o “bode na sala”, toda vez que o assunto é a pejotização.

O STF tem reforçado o posicionamento de que há um contexto global de flexibilização das normas trabalhistas e que a Constituição Federal não impõe um modelo específico de produção, não faz qualquer sentido manter as amarras de um modelo verticalizado, fordista, na contramão de um movimento global de descentralização[1].

Portanto, o entendimento majoritário dos ministros do STF é que não é possível obrigar as empresas a um modelo de organização e nem de obrigar as pessoas a se submeterem a um contrato de trabalho, pois a valorização do trabalho e da livre iniciativa estariam previstos, estrategicamente, lado a lado no texto constitucional.

Foi nesta tônica que o STF protagonizou a análise da primeira grande alteração na legislação, que se deu com a edição do artigo 129 da Lei 11.196/05[2], consolidada com o advento da reforma trabalhista e a alteração do art. 4º-A da Lei 6.019/74[3]. O julgamento da ADPF 324 e do RE 958.252[4], que discutiam a licitude da terceirização das atividades precípuas da empresa tomadora do serviço, assegurou às empresas o direito de se organizarem e de contratar outras empresas para a execução de quaisquer atividades a serem desempenhadas, inclusive suas atividades-fim.

No julgamento da ADC 66/DF, o STF declarou a constitucionalidade do art. 129, da Lei 11.196/2005, e a relatora ministra Cármen Lúcia, em seu voto, fez relevantes apontamentos sobre a necessidade de que seja assegurada a liberdade de organização da atividade econômica empresarial, dotando-a da flexibilidade e da adequação atualmente exigidas, e da necessária compatibilização com os valores sociais do trabalho. Apontou ainda, que eventual conduta de maquiagem do contrato, deverá ser avaliada, por inexistirem no ordenamento constitucional garantias ou direitos absolutos.

O ministro Gilmar Mendes também destacou que a Justiça do Trabalho estará diante do grande desafio de coibir abusos, nomeadamente o uso ardiloso da terceirização como expediente de pulverização da cadeia produtiva com vistas a impedir, em qualquer altura do processo produtivo, que alguma empresa arque com os direitos trabalhistas envolvidos[5].

Muitas decisões da Justiça do Trabalho que reconheciam o vínculo empregatício de pessoas físicas com pessoas jurídicas contratantes, inclusive no que tange as pessoas físicas sócias de pessoas jurídicas contratadas, têm sido canceladas pelo STF após os julgamentos mencionados[6].

O teor das decisões proferidas pelo Carf também acompanhou as mudanças. A simples menção à terceirização da atividade fim e a verificação de simulação do contrato não são suficientes para descaracterizar a contratação realizada, mesmo quando se trate de serviços intelectuais.

Após o art. 129 da Lei 11.196/05, comprovada a presença dos requisitos caracterizadores da relação empregatícia, a autoridade fiscal ao aplicar a norma previdenciária, ao caso em concreto, e observando o princípio da primazia da realidade, tem autonomia para, no cumprimento de seu dever funcional, reconhecer a condição de segurado empregado, para fins de lançamento das contribuições previdenciárias efetivamente devidas[7].

Principalmente em casos envolvendo a profissão médica, foram proferidos vários acórdãos pelo Carf, considerando a pejotização válida, vale mencionar alguns: Acórdãos nºs 2401-005.900, 2201-004.378, 2402-007.200, 2401-005.900, 2201-004.538, 2401-011.244, 2301-005.788, 2201-004.539, 2301-005.823, 2803-003.815, 2402-012.457.

Recentemente, parte dos conselheiros da 1ª TO da 1ª Câmara da 2ª Seção consideraram a hipersuficiência dos profissionais como um critério para validar a pejotização no caso analisado. No caso específico, os profissionais eram qualificados, com grande parte sendo engenheiros formados em universidades renomadas, e caracterizados pelo art. 444 da CLT[8] como hipersuficientes (Acórdão 2101-002.857, ainda pendente de publicação).

Esse critério alinha-se com as decisões do STF em Reclamações Constitucionais[9] que anularam decisões da Justiça do Trabalho que reconheciam a relação de emprego. O STF tem reiterado que trabalhadores hipersuficientes possuem a capacidade de fazer escolhas informadas sobre sua contratação, devendo ser respeitados os contratos formalizados, salvo se houver evidências concretas de coação na contratação (Rcl 56285 AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe de 30/3/23).

O debate sobre a pejotização, amplamente analisado pelo Carf e pelo STF, revela uma complexa interseção entre liberdade contratual, direitos dos trabalhadores e a necessidade de um sistema previdenciário equilibrado. As decisões recentes indicam uma tendência em direção à maior flexibilidade na organização do trabalho.

O Carf, ao seguir as diretrizes do STF, tem mostrado uma abordagem mais pragmática, reconhecendo a validade da pejotização desde que não haja a caracterização de “intuito de fraude”. No entanto, a questão não está totalmente pacificada e diversos casos concretos revelam grande complexidade. Nesse cenário, o critério da hipossuficiência pode servir como balizador importante para avaliar a legitimidade da pejotização, porém, adverte-se, que essa questão carece de mais debates aprofundados entre os conselheiros.

Diante da complexidade política e social envolvida, é essencial que o Legislativo avance em propostas que atualizem e esclareçam os limites da pejotização, garantindo, ao mesmo tempo, a liberdade contratual, a proteção dos trabalhadores e a viabilidade do sistema de custeio da previdência social.

_____________________________________________________________________________

[1]

STF. Pleno. ADIs 5.685, 5.686, 5.687, 5.695 e 5.735, Voto do Min. Gilmar Mendes.

[2]

“Art. 129. Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no art. 50 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil”.

[3]

“Art. 4º-A. Considera-se prestação de serviços a terceiros a transferência feita pela contratante da execução de quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal, à pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviços que possua capacidade econômica compatível com a sua execução.

1º A empresa prestadora de serviços contrata, remunera e dirige o trabalho realizado por seus trabalhadores, ou subcontrata outras empresas para realização desses serviços.

2º Não se configura vínculo empregatício entre os trabalhadores, ou sócios das empresas prestadoras de serviços, qualquer que seja o seu ramo, e a empresa contratante”.

[4]

Tema 725: É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante.

[5]

STF. Pleno. ADIs 5.685, 5.686, 5.687, 5.695 e 5.735, Voto do Min. Gilmar Mendes.

[6]

No voto proferido pelo Conselheiro Wesley Rocha (PTA nº. 15504.725051/2015-39) foi mencionado Repositório da FGV, que revelou que em 2023, 64% das reclamações foram julgadas procedentes, afastando o vínculo empregatício.

[7]

Acórdão nº. 2401-010.803, 2ª Seção de Julgamento, 4ª Câmara, 1ª Turma Ordinária, sessão de 02/02/2023, relatora Conselheira Miriam Denise Xavier. No mesmo sentido, vale mencionar:

Acórdão nº. 2401-011.574, 2ª Seção de Julgamento, 4ª Câmara, 1ª Turma Ordinária, sessão de 05/03/2024, relatora Conselheira Miriam Denise Xavier. Acórdão nº. 2301-011.031, 2ª Seção de Julgamento, 3ª Câmara, 1ª Turma Ordinária, sessão de 06/02/2024, relatora Conselheira Vanessa Kaeda Bulara de Andrade. Acórdão nº. 2401-011.584, 2ª Seção de Julgamento, 4ª Câmara, 1ª Turma Ordinária, sessão de 05/03/2024, relator Conselheiro Guilherme Paes de Barros Geraldi. Acórdão nº. 2201-011.417, 2ª Seção de Julgamento, 2ª Câmara, 1ª Turma Ordinária, sessão de 07/02/2024, relator Conselheiro Fernando Gomes Favacho.

[8]

Art. 444 – As relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes.

Parágrafo único. A livre estipulação a que se refere o

caput

deste artigo aplica-se às hipóteses previstas no art. 611-A desta Consolidação, com a mesma eficácia legal e preponderância sobre os instrumentos coletivos, no caso de empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.

[9]

Reclamações 68.404, 23/05/2024, 60.106, 02/08/2023, 60.384, 30/06/2023, 67.246, 17/04/2024.

FONTE: JOTA – POR ANA CAROLINA DA SILVA BARBOSA E ROBERTO JUNQUEIRA DE ALVARENGA NETO

 

 

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