Tributação de incentivos fiscais afeta resultados do ano e associação vê impacto em investimento; alta de ICMS encarece preços.
A necessidade de os governos federal e estadual elevarem impostos neste ano para dar conta de seus rombos fiscais já bateu nos resultados das empresas, e por tabela, na vida do consumidor. Esse efeito deve se estender em 2025, com mais alterações que vão pesar no bolso das companhias e logo, nos recursos para investimento.
Companhias de capital aberto afetadas pelas mudanças na tributação, válidas após janeiro, lucraram menos neste ano pelo impacto direto dessa alta. Medidas tiveram que ser tomadas, em poucos meses, para mitigar parcialmente esse peso, que não era esperado.
Pelo publicado nas demonstrações financeiras do primeiro semestre, houve, principalmente, o impacto do início da cobrança de impostos e contribuições sobre incentivos recebidos por investimentos feitos no país, as chamadas subvenções para investimento.
“Há ações para mitigar parte do imposto maior, mas essa insegurança jurídica criada é bem ruim para os planos” — André de Moraes
Levantamento dos balanços do primeiro semestre de 39 empresas com capital aberto, que estão entre os setores mais impactados pela alteração, mostra uma virada nos números: o que era ganho fiscal em um ano, no ano seguinte, virou despesa com impostos.
Pelos cálculos do Valor, as 39 empresas somaram cerca de R$ 4,1 bilhões pagos em imposto de renda e contribuição social sobre o lucro no primeiro semestre de 2024, frente a um crédito fiscal, no mesmo período do ano anterior, de R$ 1,1 bilhão. Como o sinal se inverteu, o ganho que, de janeiro a junho de 2023, equivalia a 0,4% da receita líquida total somada das companhias, no mesmo período deste ano, virou um débito que representou 1,34% da receita.
No mesmo intervalo, a receita líquida das empresas analisadas subiu 4,6%, para R$ 304 bilhões, para uma inflação até junho de 4,23% (IPCA). No ano anterior, quando acumularam crédito fiscal como percentual das vendas, a receita havia crescido 4%. Nessa lista estão, principalmente, companhias de alimentos, bebidas, medicamentos, transportes e diversos segmentos do comércio, que se beneficiavam, de alguma forma, de incentivos sobre investimentos realizados no Brasil nos últimos anos.
Somado a essa nova pressão, ainda começaram a ser aplicadas, entre janeiro e março, novas alíquotas de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) nos 26 Estados e Distrito Federal. Houve um aumento de até 20% no percentual anteriormente cobrado de ICMS.
A alíquota anterior aumentou de um a quatro pontos, a depender da região, entre fim de 2023 e os primeiros meses de 2024.
Neste caso, houve repasse direto para preços dos produtos, já refletido num aumento da inflação medida internamente pelo comércio. “Se ICMS sobe, o repasse é instantâneo, porque ele compõe o preço final. Ninguém segura”, diz uma diretora jurídica de uma cadeia de atacado.
Sobre as subvenções para investimento, o governo publicou no ano passado a Medida Provisória 1185/2023, que pegou o mercado de surpresa, e que foi transformada em lei na virada do ano. Passou-se a tributar os incentivos fiscais de investimentos das companhias como uma forma de elevar a arrecadação já em 2024. O governo projeta R$ 35 bilhões em receita neste ano com a mudança.
Entre os negócios mais afetados estão líderes de mercado como Ambev, M. Dias Branco (dona da Piraquê e Adria), Assaí, Mateus, Raia Drogasil, Randoncorp e Marcopolo, entre outras. A maior parte dos grupos ajuizou ações na Justiça, com pedido de liminares e aguardam julgamentos.
“O governo quer equilíbrio fiscal apenas aumentando carga tributária, sem cortar despesas. A questão é que, ao tributar benefícios fiscais para investimento, ele se esquece que investimento é feito dentro de uma expectativa de retorno futuro. E isso piora muito nesse ambiente”, diz Pablo Cesário, presidente-executivo da Associação Brasileira das Companhias Abertas (Abrasca).
Entre as ações tomadas para diluir os efeitos, as empresas lançaram mão do que chamam de “contramedidas”. Segundo o advogado André Buttini de Moraes, sócio fundador do escritório Buttini Moraes, que acompanha o tema das subvenções desde 2013, as empresas trataram de usar prejuízos fiscais ou créditos acumulados, por exemplo, para compensar o impacto da tributação maior. O Mateus, maior rede de atacarejo do Nordeste, seguiu esse caminho.
A atacadista disse, em seu balanço do segundo trimestre, que teria que reconhecer R$ 138 milhões em Imposto de Renda no período por causa da nova lei, 630% acima do mesmo intervalo de 2023. De janeiro a junho, a alta foi de 1.100%, para R$ 233 milhões. Para mitigar, em parte, essa despesa, o grupo usou a compensação de crédito fiscal via prejuízos acumulados.
A fabricante de bebidas Ambev tentou compensar com um resultado financeiro melhor e ganhos em eficiência operacional, mas as despesas maiores por causa do aumento do imposto de renda levou a um recuo do lucro de 2,5% no semestre. “Ainda haveria, para as companhias, a opção de distribuir juros sobre capital próprio, o que beneficia a linha de Imposto de Renda. Há ações possíveis para amenizar o impacto, mas de qualquer forma, toda essa insegurança jurídica criada é bem ruim para os planos de investimentos desses setores”, diz Moraes.
Na prática, as subvenções envolvem incentivos fiscais que podem ser gerados na abertura ou expansão de fábricas, de centros de distribuição ou nas compras de maquinários, e são concedidos pela União, Estados e Municípios.
A Lei 14.789/23, resultado da MP de 2023, definiu que, após janeiro, as receitas de subvenção de ICMS começariam a ser tributadas pelo IRPJ/CSLL e pelo PIS/Cofins. Com isso, passou a ser taxado o benefício que reduzia ou as isentava de pagamento de tributos como contrapartida a investimentos.
Até 2023, as empresas abatiam esses incentivos, melhorando o lucro líquido. Mas a nova lei, sancionada em dezembro pelo presidente Lula, exclui benefícios vinculados a gastos de custeio, focando em incentivos que promovam investimentos produtivos.
O novo texto ainda modificou as regras de dedução dos juros sobre capital próprio (JCP), restringindo a base de cálculo, e logo, limitando eventuais ganhos fiscais. E o tema ainda pode passar por mais mudanças em 2025.
O governo tem projeto de lei para aumento na tributação do JCP passando de 15% para 20%, em 2025. Isso deve trazer aos caixas da União receita adicional de R$ 6,01 bilhões só em 2025. Quem paga é o investidor pessoa física, que aplica seus recursos nas empresas, que por sua vez, usam esse capital para investimentos e crescimento.
Para o Ministério da Fazenda, as medidas são uma forma de reduzir distorções. A previsão do Ministério da Fazenda é arrecadar R$ 35 bilhões em 2024 com a taxação sobre os incentivos.
Na visão da Abrasca, houve dois impactos principais neste ano: a questão das subvenções e a nova lei de preços de transferência, um método que calcula operações entre empresas no exterior e seus negócios no Brasil. Em ambas, as regras passaram a valer após janeiro.
Para o governo, o fato de o país estar crescendo, assim como as empresas voltadas ao consumo, segundo último dado do PIB publicado na quarta-feira (4), abre espaço para se acomodar uma revisão da política de incentivos. A Abrasca, porém, ressalva que essa expansão pode perder força em 2025.
“O crescimento das companhias reflete as reformas trabalhista e previdenciária, e o marco do saneamento, que foram avanços aprovados anos atrás, além do aumento recente do gasto público. Mas isso pode ter fôlego curto, porque o rombo fiscal do país deve levar a uma manutenção de uma política monetária restritiva, até com possível aumento de juros se a inflação voltar a subir”, diz Cesário.
O efeito dessa expansão da carga tributária foi sentido, principalmente, pelas empresas voltadas a mercado interno porque o benefício fiscal ocorre em cima do ICMS.
Na Ambev, de janeiro a junho, as despesas com IR e CSLL alcançaram R$ 1,65 bilhão, comparadas a um ganho fiscal de R$ 167 milhões um ano antes. A alíquota efetiva de imposto foi de 20,9%, ante uma taxa negativa de 2,7% um ano antes.
Antes do efeito dos impostos, a empresa tinha um lucro líquido aos controladores de R$ 7,9 bilhões de janeiro a junho, que caiu para R$ 6,1 bilhões após os tributos, um recuo de 1,7%. A empresa disse a analistas, em agosto, que houve efeitos da redução dos incentivos e da menor dedução dos juros sobre capital próprio.
“A lei mudou e vamos seguir cumprindo a lei. O que está no nosso controle é a gestão de custos e despesas, a receita por hectolitro, e estamos fazendo isso de forma consistente”, disse, em agosto, Lucas Lira, diretor financeiro da Ambev. Procurado, o grupo não se manifestou.
Quem também sentiu no lucro o efeito das mudanças foram a Randoncorp, na área de transportes, a Raia Drogasil (RD), de varejo farmacêutico, e a Grendene, fabricante de calçados.
Maior cadeia de farmácias do país, a RD teve uma alta de 133% do imposto de renda e contribuição social no semestre, com uma apuração de R$ 101,5 milhões de abril a junho. Isso equivaleu a 1% da receita bruta, um aumento de 0,2 pontos frente a 2023.
A alíquota efetiva foi de 22,2% sobre o lucro antes de IR, avanço de 4,2 pontos. “Esse aumento inclui um impacto negativo de 7,2 pontos pelo início da tributação das subvenções e de 2,4 pontos pela provisão menor de JCP, ambos em decorrência da lei”, diz no balanço.
A margem Ebitda recuou de 8,5% para 7,9% no segundo trimestre, por causa da alteração nas subvenções e por um reajuste de preços anual de medicamentos abaixo de 2023. O lucro caiu 4%.
Na Randoncorp, fabricante de reboques, houve retração de 1,3 ponto na margem líquida e de 25,5% no lucro líquido de abril a junho, reflexo de efeitos não recorrentes e da maior alíquota efetiva de IR e CSLL.
Na fabricante de calçados Grendene, a tributação das subvenções custou R$ 5 milhões de abril a junho e R$ 10,5 milhões no semestre. Ao desconsiderar o efeito da lei, a receita líquida teria crescido 4,4%, e não 3,7% no semestre, como ocorreu.
O lucro operacional foi R$ 100 mil menor por causa do mudanças nas regras, atingindo R$ 42,4 milhões, alta de 47%. Procuradas, RD, Grendene e Randoncorp não se manifestaram.
A nova lei definiu que a empresa tributada, que recebe as subvenções, poderia apurar um crédito fiscal dentro de determinadas regras, mas há um “labirinto complexo” para conseguir essa compensação. “Muito difícil cumprir todas as exigências, então as empresas ainda estão estudando como obter esse crédito, enquanto já estão tendo que gerir essa carga tributária mais pesada”, diz Marcelo Guimarães Francisco, sócio tributário do escritório Mattos Filho.
FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR ADRIANA MATTOS E NELSON NIERO — DE SÃO PAULO