O Supremo Tribunal Federal discute — em julgamento de repercussão geral interrompido na última segunda-feira (26/8) — um tema que interfere na validade de uma regra prevista na regulamentação da reforma tributária que tramita na Câmara: a cobrança do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) sobre repasses feitos aos beneficiários no caso de morte do titular de plano previdenciário privado nas modalidades VGBL ou PGBL.
Os três votos depositados até agora indicam um posicionamento contrário ao texto do segundo projeto de lei complementar (PLP) da reforma. Especialistas entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico entendem que, caso esse cenário se mantenha ao final do julgamento e da tramitação legislativa, a nova regra já nascerá inconstitucional — ou, no mínimo, enfraquecida.
Contexto
VGBL e PGBL são tipos de previdência privada aberta. No plano vida gerador de benefício livre (VGBL), o Imposto de Renda incide apenas sobre os rendimentos. Já no plano gerador de benefício livre (PGBL), o IR é pago sobre todo o capital acumulado — ou seja, o total resgatado ou recebido —, mas é possível abater até 12% da renda tributável anual.
O PGBL é considerado uma cobertura por sobrevivência. Após certo tempo, o titular pode receber todo o dinheiro investido e os rendimentos obtidos ou recebê-los em parcelas mensais.
Já o VGBL é considerado um seguro, regulado pela Superintendência de Seguros Privados (Susep). O titular pode escolher quem recebe os valores por ocasião de sua morte e direcionar percentuais distintos do total para diferentes beneficiários.
Quando o titular de um VGBL ou PGBL morre, os recursos investidos são transferidos de forma direta para os beneficiários do plano. Alguns estados, como Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Paraná e Acre, cobram ITCMD sobre esses repasses.
Congresso x STF
O texto-base do segundo PLP da regulamentação da reforma tributária prevê a incidência do ITCMD sobre os valores recebidos pelos beneficiários de planos PGBL e VGBL. Há ainda uma previsão de isenção da cobrança nos casos de investimentos em VGBL feitos mais de cinco anos antes da transmissão.
Enquanto isso, o STF busca estabelecer uma tese sobre o tema na análise de três recursos extraordinários. A discussão tem origem em uma decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que validou a cobrança sobre os repasses a beneficiários do PGBL.
O ministro Gilmar Mendes pediu vista dos autos três dias após o início do julgamento virtual. Antes da interrupção, três ministros votaram pela inconstitucionalidade da incidência do ITCMD sobre os repasses de ambas as modalidades de planos. Alexandre de Moraes e Flávio Dino acompanharam o relator, Dias Toffoli.
Impacto
O entendimento de Toffoli contraria a previsão da reforma. Assim, caso o voto do relator prevaleça no Supremo e o texto do PLP seja aprovado no Congresso como está, haverá um atrito entre tese e lei.
O advogado Rafael Pandolfo, sócio fundador de um escritório com seu nome, focado em Direito Tributário, diz que, mesmo nesse cenário hipotético, os estados poderiam argumentar que a publicação de uma nova lei complementar altera o cenário analisado pelo STF.
Hoje, a cobrança do ITCMD nesses casos está prevista apenas em leis estaduais. Ou seja, o resultado do julgamento não garante que o Congresso abriria mão de manter tal tributação na reforma.
A Câmara aprovou o texto-base do PLP, mas ainda precisa votar as emendas. Uma delas, proposta pelo deputado Domingos Neto (PSD-CE), busca retirar a incidência do ITCMD sobre todos os planos de previdência complementar.
Henrique de Palma, sócio da área tributária do escritório Cescon Barrieu, não acredita que o julgamento vai influenciar no texto do projeto ou “compelir os congressistas a mudarem a redação”. Mas o advogado entende que não há como fugir de uma discussão após a publicação da lei.
Ele não considera que a norma já nasceria morta, mas ressalta que a tese precisaria ser observada. Após uma decisão de repercussão geral, todos os tribunais têm de observar a tese definida pelo STF.
Na visão de Pandolfo, uma eventual decisão do Supremo com a tese de Toffoli traria um novo argumento técnico ao debate, o que enfraqueceria muito a regra prevista no texto atual da reforma.
Assim, “a lei nasceria inconstitucional, pois as razões de decidir adotadas pelo STF não poderiam ser contornadas por legislação infraconstitucional”. De acordo com ele, “para que essa tributação fosse viável, seria necessária a alteração da Constituição”.
Essa também é a opinião do advogado Alessandro Fonseca, sócio de gestão patrimonial, família e sucessões do Mattos Filho. Ele considera que haveria nessa situação “inconstitucionalidade superveniente”.
Tese do relator
Em seu voto, Toffoli afirmou que o PGBL e o VGBL garantem ao titular o pagamento de renda complementar à aposentadoria, mas, no caso de morte, eles passam a cumprir uma “finalidade acessória” e funcionar como um seguro de vida, com repasses aos beneficiários.
O artigo 794 do Código Civil diz que, nos seguros de vida, “o capital estipulado” não é considerado herança. Para o magistrado, essa ideia se aplica ao caso. Ou seja, “as importâncias repassadas aos beneficiários não integram o inventário” do falecido.
Isso é confirmado pela Lei 11.196/2005, segundo a qual, no caso de morte do participante, os beneficiários podem resgatar quotas ou receber benefício continuado “independentemente da abertura de inventário ou procedimento semelhante”.
Palma, Pandolfo e Fonseca concordam com os fundamentos adotados pelo magistrado. A ideia central é que, quando alguém contrata um plano VGBL ou PGBL, os objetivos principais são o ganho pessoal e o resgate no futuro, não uma eventual transmissão dos valores após a morte.
O sócio do Cescon Barrieu acrescenta que o beneficiário de um plano do tipo não precisa ser herdeiro do titular.
Manobras contra o imposto
Quando a Câmara aprovou o texto-base do PLP, no último dia 13, o relator, deputado Mauro Benevides Filho (PDT-CE), argumentou que pessoas mais ricas passam décadas aplicando em fundos de investimento, mas migram para o VGBL quando completam 70 ou 75 anos de idade, com o intuito de não pagar o ITCMD.
Segundo ele, a inclusão dessa tributação na reforma é uma maneira de evitar esse “planejamento tributário” e impedir que previdências privadas sejam usadas para driblar o imposto. Mas Pandolfo afirma que casos do tipo são extraordinários: “A burla pode ocorrer apenas nas operações anômalas, simuladas”.
Palma, por sua vez, diz que os planos de previdência privada são formas legítimas de transmissão de bens, o que não exclui a existência de algumas situações de “abuso de forma”. Para ele, é necessária uma análise caso a caso.
E Fonseca exemplificou uma “situação extrema”: uma pessoa hipotética de 95 anos possui diversas aplicações financeiras, transfere tudo para um plano de previdência privada e nomeia seus herdeiros como beneficiários.
Segundo ele, isso não tem “substância econômica”. E “tudo aquilo que não tem propósito negocial, na perspectiva tributária, carece de legitimidade”. Sem legitimidade, pode haver “desconsideração de atos e fatos, por ausência de substância econômica”.
Em outras palavras, “muito embora a forma jurídica nesse exemplo seja válida, a essência não existe”. Isso porque a intenção dessa pessoa “seguramente é reduzir a carga tributária”. O advogado aponta que uma transação não é legítima se seu único propósito é a redução da carga tributária.
Assim, se houver esse desvirtuamento, os produtos precisam ser “autuados e alcançados pelo tributo”. Mas, para Fonseca, presumir a falta de boa-fé é “muito perigoso”. No geral, as relações são consideradas honestas até que se prove o contrário.
Na sua visão, é preciso tomar muito cuidado para que “uma má prática adotada por algumas pessoas não paute a relação jurídica”. A solução seria conferir “se houve propósito negocial” e “qual foi a intenção” das partes.
RE 1.363.013
FONTE: CONSULTOR JURÍDICO – POR JOSÉ HIGÍDIO