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REFORMA TRIBUTÁRIA: REINVENÇÃO DO BRASIL

9 de agosto de 2024

Essa transformação normativa, que repercute na percepção doutrinária de um constitucionalismo reformulado para os novos tempos, não é a única nem mesmo o principal efeito da reforma tributária enquanto reinvenção do Brasil

A reforma tributária, como sabemos, previu que a nova tributação sobre o consumo seria criada nos moldes de um Imposto sobre o Valor Agregado (IVA), através da cobrança de dois tributos distintos: a Contribuição de Bens e Serviços (CBS), a cargo da União, e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a cargo dos Estados, municípios e Distrito Federal. Diante da reformulação a que se assiste hoje no constitucionalismo contemporâneo, o advento da reforma tributária que institui o IVA dual ganha outra perspectiva.

Destaque-se aí uma homogeneidade que não institui um Estado federal de decisões fragmentadas, mas uma federação em que o objetivo político, econômico e social deve instaurar uma cooperação entre as unidades federadas.

Cooperação exige colaboração como fator de desenvolvimento. Não uma colaboração a partir de limites e exclusões, mas uma colaboração de interdependência, na qual às partes devem ser asseguradas condições básicas para se desenvolverem como um todo. A exigência de remover desigualdades básicas geradas por condições econômicas adversas, numa região ou num setor, ganha o sentido de serem compensadas num regime de equilíbrio ponderado.

Em termos de federalismo, a união indissolúvel (soberania) atribuída expressamente à ação da União e a cooperação e a ação dos entes federados como exercício de autonomia cooperativa ganham outra perspectiva. Nesse sentido, a valorização da cooperação com o fito de associar permanentemente forças ativas, com exclusão de autonomias rivais fora de qualquer cálculo de razoabilidade, mas, sobretudo com a exclusão de inflexibilidades, como se o interesse comum só pudesse ser constituído em nome de autonomias infensas de qualquer interrelação. Donde a presença do princípio da diferença, mas com o dever de compreender as razões dos outros, com o acento não em proibições, mediante segregações compartimentadas, mas no reconhecimento da importância de normas permissivas e do instrumento autorizativo como núcleo estrutural das relações federativas.

Isso repercute diretamente na percepção da federação. O Estado-membro não deixa de ser um conjunto de órgãos e atividades que, ao lado dos entes privados da sociedade civil, tem subsistência própria. Essa atuação, de um lado, sobre os bloqueios normativos do Estado de Direito (limites ao poder de tributar, descentralização de recursos, garantias de liberdade do cidadão). Mas, de outro, exige cada vez mais funções positivas: prestar serviços públicos, repensar setores, executar políticas de desenvolvimento.

Ora, se atentarmos para a complementação exigida pela Constituição entre Estado Democrático de Direito e federalismo de cooperação, ganham sentido constitucional os dispositivos que regulam a estrutura organizacional do IBS/CBS e o princípio federativo.

Lido seus princípios em consonância com preceitos de organização, dentre os quais estão os da ordem econômica no ponto referente às funções do Estado, chega-se a um patamar hermenêutico diante do qual nada obsta que a reforma tributária esteja adequada ao princípio federativo enquanto conjugação de dois ideais: autonomia e cooperação, donde a exigência de uniformidade.

Chama a atenção a reforma efetuada quando, após a discriminação dos tributos de competência dos entes federados, o estabelecimento de uma nova Seção, Seção V-A, voltada para um imposto de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e municípios.

O uso da expressão compartilhada traz uma inovação doutrinária significativa na percepção da federação. Embora esteja previsto que cada ente federativo fixará sua alíquota própria por lei específica, os novos tributos terão legislação única e uniforme em todo o território nacional e haverá um Comitê Gestor do IBS que arrecadará o tributo e distribuirá o produto da arrecadação ao ente federativo de destino das operações.

Ora, na linha do federalismo cooperativo, o que se sublinha é, assim, o princípio estrutural da igualdade no exercício da cooperação e da solidariedade, como perfil da unidade.

Pode-se dizer, em suma, que, ao exigir-se deliberação conjunta no Comitê Gestor, mantêm-se o princípio da diferença e o dever de unidade que informa a federação solidária. Não se trata de decisão unitária e superior, apenas de deliberação conjunta. O que, afinal, sustenta a autonomia dos entes estaduais e municipais em face da União.

Ao invés de um princípio geral (organizacional) que norteia a repartição de competência entre as entidades componentes do Estado federal com a predominância de interesses (geral, regional e local), caminha-se para a realocação de competências tributárias em sede de uma lei complementar uniforme para os entes federados, enquanto partes cooperativas.

Com isso, sublinhe-se, enfim, o papel da reforma tributária na reinvenção do Brasil. Certamente essa transformação normativa, que repercute na percepção doutrinária de um constitucionalismo reformulado para os novos tempos, não é a única nem mesmo o principal efeito da reforma tributária enquanto reinvenção do Brasil. Mas é, certamente, uma inflexão significativa na direção de novas responsabilidades prospectivas, preocupadas com a consecução de finalidades políticas contidas no perfil constitucional da Constituição de 1988.

Tércio Sampaio Ferraz Junior é professor titular aposentado da Universidade de São Paulo e professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR

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