Há muitos pontos de controvérsia levantados nas audiências públicas que demandam maior debate público.
A promessa do grupo de trabalho sobre a reforma tributária na Câmara dos Deputados é a de entregar o relatório sobre o projeto de lei complementar (PLP) nº 68/2024 até o final deste mês de julho. Com isso, o texto estará pronto para votação na Casa e, sendo aprovado, seguirá para o Senado.
Há muitos pontos de controvérsia levantados nas audiências públicas que demandam maior debate público – resta saber se as casas legislativas estão dispostas a fazê-lo. Um deles se situa na extensão do princípio da não cumulatividade e no condicionamento do crédito para o adquirente ao efetivo pagamento dos tributos na operação anterior. O que parecia ser exceção constitucional virou regra no texto da regulamentação. Outra questão está na responsabilidade tributária das plataformas digitais e na possibilidade de qualificá-las, inclusive, como contribuintes, a depender se tratar da importação de bens ou serviços.
Ao lado dessas, há outras questões relevantes que se relacionam com o impacto mais direto que a tributação pode ser na vida dos cidadãos. Diversos dos pontos a seguir foram apontados em ofício elaborado pelo grupo de pesquisa Tributação e Gênero da FGV Direito SP, entregue aos deputados federais integrantes do GT em audiência pública realizada no final de junho.
O primeiro trata da limitação do montante de cashback: o percentual médio de 25% parece ser inadequado para mitigar a regressividade inerente à tributação do consumo e não reflete a ausência de capacidade econômica da população de baixa renda. Nesse aspecto, limita a aplicação do artigo 145, parágrafo 3º, da Constituição, que impõe a observância da justiça tributária na formulação de normas relativas ao Sistema Tributário Nacional.
Além disso, segundo o artigo 19 do PLP 68/2024, as alterações na legislação que impactem a arrecadação do IBS ou da CBS devem ser compensadas pela elevação ou redução das alíquotas de referência respectivas, a depender do impacto em questão. Nos termos do parágrafo 1º do mesmo dispositivo, incluem-se entre as hipóteses que geram tal impacto a alteração nos “critérios relativos à devolução geral de IBS e CBS a pessoas físicas”. Ou seja, para que haja ampliação aos percentuais estabelecidos no PLP, deve-se aumentar, também, as alíquotas do IBS e da CBS – determinação altamente impopular e que, possivelmente, perderá na disputa legislativa. Disso decorre, pois, o não reconhecimento do cashback como um direito, mas sim como um benefício, cuja modulação é dependente da arrecadação geral.
Outra questão relevante tem relação com a extensão do imposto seletivo. A despeito das muitas manifestações acerca da amplitude de seu objeto, no que se refere ao combate das externalidades negativas ocasionadas pelo consumo de ultraprocessados, o PLP foi bastante tímido: apenas um NCM para bebidas açucaradas, com a exclusão de outras bebidas igualmente nocivas do alcance do tributo. Ainda mais grave é a não tributação diferenciada de armas de fogo.
Na redação da PEC 45 aprovada pelo Senado Federal, havia a previsão da incidência do imposto seletivo sobre armas e munições. A determinação foi eliminada via destaque na Câmara dos Deputados. Recorde-se que a ausência de tributação seletiva sobre armas fará com que a tributação sobre tais bens caia de, na média, 89,25% para 26,5% – uma redução de mais de 70%.
Não há justificativa para tal medida. Armas de fogo são os principais instrumentos para a prática de feminicídio e de crimes contra a população negra, ao lado de acidentes por elas provocados que refletem no Sistema Único de Saúde, com aumento de despesas públicas. Isso tudo sem falar na ausência de lógica de não tributar mais severamente um bem que é causador de risco à vida e à integridade física das pessoas.
Por fim, importante mencionar que a essencialidade segue sendo critério para a modulação de alíquotas na tributação do consumo. Isso implica um olhar apurado sobre os casos de alíquota zero e o confronto com outros, de redução de 60% ou mesmo manutenção no regime geral. Apenas para ilustrar, destaco o ganho que se teve na redução da tributação de produtos de higiene menstrual – tais bens estão inseridos na tributação favorecida que resultará em uma alíquota de cerca de 10,6%, se mantida a promessa da alíquota padrão de 26,5%. Ainda assim, causa estranheza que outros bens, maléficos à saúde, como alimentos ultraprocessados, situem-se no mesmo patamar, enquanto medicamentos para a impotência sexual masculina estejam na lista dos tributados à alíquota zero.
A reforma sobre a tributação do consumo tem o enorme potencial de tornar o sistema menos complexo, sem que se tenha abandonado critérios básicos de justiça. A análise crítica da carga tributária que restará incidente sobre determinados bens e serviços é fundamental para que a ideia geral de realização de justiça tributária e redução da regressividade não se percam.
FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR TATHIANE PISCITELLI – SÃO PAULO