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NEUTRALIDADE COMPROMETIDA NA REFORMA TRIBUTÁRIA

28 de junho de 2024

Se realmente queremos alinhar o país às melhores práticas de tributação sobre o consumo, adotadas por aqueles que utilizam tributos neutros, plurifásicos e verdadeiramente não cumulativos, devemos combater os desvios que se apresentam

O princípio da neutralidade passou a integrar as limitações ao poder de tributar, figurando como princípio informador do IVA-Dual, substituto dos principais tributos incidentes sobre o consumo no país.

A despeito dos conceitos doutrinários, a neutralidade na tributação indireta visa não impactar as decisões econômicas dos contribuintes, evitar a incidência em cascata ao reconhecer o direito de dedução dos tributos das etapas anteriores e não permitir que estes sejam suportados pelos contribuintes de direito, meros gestores dessa obrigação.

A modificação do sistema tributário nacional, ainda em curso no Congresso Nacional, embora enfatize o princípio da neutralidade, compromete sua plena efetivação ao contrariar esses três pilares básicos.

Primeiramente, as operações imunes, isentas ou sujeitas a alíquota zero não permitirão a apropriação de crédito para uso nas operações subsequentes e acarretarão a anulação do crédito relativo às operações anteriores (exceto exportação e alíquota 0%), ocasionando resquícios de cumulatividade. Embora esse defeito tenha sido tolerado para o ICMS, regido pela regra da não cumulatividade, agora compromete a plena concretização da neutralidade.

No mesmo sentido, a solução proposta para empresas enquadradas no Simples Nacional, bem como a equivocada manutenção da sistemática da substituição tributária prospectiva, passível de alcançar o IBS e a CBS, também contribuem para o comprometimento da neutralidade fiscal.

No Simples Nacional, a solução adequada seria a autorização para o reconhecimento dos créditos integrais desses tributos aos adquirentes, sem que o empresário fosse obrigado a optar por calculá-los fora do regime simplificado. A proposta atual estimula o esvaziamento do tratamento diferenciado e fere a ideia de neutralidade ao fomentar o desequilíbrio concorrencial, considerando que a ampliação das oportunidades de creditamento tornará a avaliação dos créditos (integrais ou parciais) um elemento decisivo nas aquisições.

Quanto à substituição tributária, é grave equívoco sua manutenção no texto constitucional, por ser naturalmente incompatível com o novo modelo proposto. A cobrança no início do ciclo econômico conflita com o princípio da tributação no destino, exigirá complexos repasses ao ente federado final, contrariando o princípio da simplicidade adotado pela reforma. Ademais, do ponto de vista do substituído, a sistemática afronta a não cumulatividade, ocasionando acúmulo de créditos.

Mas o golpe de misericórdia emerge do PLP 68/2023 ao condicionar os créditos dos contribuintes à efetiva comprovação do pagamento do tributo para todas as operações entre contribuintes. Inova porque a redação da EC 132/2023 deixou transparecer que a lei complementar “poderia estabelecer hipóteses em que o aproveitamento ficaria condicionado a essa verificação”, dando a impressão de que a norma, em casos excepcionais, delimitaria as circunstâncias.

Em termos práticos, todos os créditos estarão sujeitos à comprovação do pagamento do tributo, que poderá ocorrer por quatro modalidades distintas: compensação entre débitos e créditos; efetivo recolhimento pelo contribuinte; por meio de liquidação financeira (split payment) ou pagamento pelo adquirente. Mas qual hipótese eleger?

Para mitigar os males que esse modelo poderá causar, sugere-se adotar o método que separa o valor do tributo do preço, no momento da liquidação financeira, destinando-o diretamente ao ente tributante. Assim, restaria assegurado o imediato reconhecimento do crédito, liberando o destinatário do ônus da comprovação de que o tributo foi recolhido aos cofres públicos, mediante pagamento ou compensação promovida pelo remetente.

O controverso mecanismo de split payment representa uma ruptura ao modelo atual de apuração dos tributos, impactará o fluxo de caixa dos contribuintes e possivelmente comprometerá a neutralidade que se almeja. Mesmo que venha a ser aplicado de forma dosada e individualizada por operação, em tempo real, resultará em acertos entre as partes e, por parte dos Fiscos, a restituição estará condicionada à inexistência de débitos por parte do contribuinte. Ademais, não se reconhece entre as modalidades de pagamento os depósitos judiciais, implicando vedação de creditamento daqueles que ousarem negociar com quem exerça o direito constitucional de recorrer ao Judiciário contra exigências contrárias ao ordenamento jurídico.

Se o ovo da serpente já estava presente no texto inaugural da reforma, agora é apresentado como um mecanismo eficiente de combate à sonegação fiscal, garantia ao direito de reconhecimento ao crédito amplo e, ao mesmo tempo, capaz de contribuir para a redução das alíquotas do IBS/CBS, devido à sua eficiência na arrecadação. Candidata-se a impressionar o mundo por sua avançada tecnologia destinada a vigiar e a punir os contribuintes.

Experiências mundiais mostram que os projetos de reformas fiscais exitosos foram aqueles que apresentaram o conjunto da obra desde o início, tornando transparentes os interesses e objetivos pretendidos, sem espaço para futuras surpresas ou ambiguidades. Não seguimos essa cartilha e permitimos que aspectos importantes fossem definidos em posteriores leis complementares, capazes de revelar, aos poucos, interesses eclipsados.

Se realmente queremos alinhar o país às melhores práticas de tributação sobre o consumo, adotadas por aqueles que utilizam tributos neutros, plurifásicos e verdadeiramente não cumulativos, devemos combater os desvios que se apresentam.

Marcelo Jabour Rios é doutor em Direito pela Faculdade de Direito da USP, com pós-doutoramento pela Universidade de Salamanca/Espanha (Centro de Estudios Brasileños de la Universidad de Salamanca)

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR MARCELO JABOUR RIOS

 

 

 

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