Não adianta simplificar o sistema tributário sem o oferecimento de métodos de solução de conflitos igualmente eficientes
O governo federal apresentou o projeto de lei complementar (PLP) nº 108/24 que, dentre outros temas, regulamentou o contencioso administrativo do IBS sem qualquer previsão sobre a “integração” com o contencioso do CBS prevista no artigo 156-B, §8º, da emenda constitucional (EC) nº 132/23. É louvável o empenho e a qualidade do material produzido por todos os integrantes dos grupos de trabalho criados para estruturar a proposta, assim como são importantes os debates públicos e as críticas sempre construtivas.
Para relembrar, este dispositivo prevê que lei complementar poderá prever a integração do contencioso administrativo relativo aos tributos previstos nos artigos 156-A (IBS) e 195, V (CBS) da EC nº 132/23.
Chama a atenção que, tanto no referido dispositivo, quanto no artigo 156-B, III, que prevê o contencioso do IBS, há a utilização da palavra “integração” pela EC nº 132/23. Poderia o legislador ter escolhido palavra distinta, como harmonização, combinação, compatibilização, adequação ou outra. E isso suscita alguma reflexão.
Sabe-se que, no latim, a expressão “in” significa “não”, tal como podemos identificar em inúmeras palavras de uso cotidiano, como impossível, indevido, imprestável e outras. No mais, a expressão “tangere” significa “tocado”. Um bem intangível, por exemplo, é um bem que não pode ser tocado. Há a preservação de uma unidade e, logo, indivisível.
O leite integral ou o período integral não comportam a ideia de fracionamento, eis que, se não mantiverem a sua higidez, integral não serão. Estaríamos diante de algo semi-integral ou parcialmente íntegro. Na própria Constituição Federal, a utilização das expressões “integro”, “integrado” ou integral” surge em contextos que não admitem fracionamento ou parcialidade. O contencioso integrado do IBS e CBS não deve ser fracionado, mas deve ser único desde a sua instalação com a impugnação ao lançamento de ofício.
Temos, por exemplo, a assistência jurídica gratuita integral (art. 5º, LXXIV), décimo terceiro salário com base na remuneração integral (art. 7º, VIII), integração dos trabalhadores domésticos à previdência social (art. 7º parágrafo único), territórios federais integram a União (art. 18, § 2º), os Estados podem instituir regiões metropolitanas para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum (art. 25, §3º), dentre inúmeros outros exemplos.
A expressão “integrado” trazida no §8º, do artigo 156-B, da EC nº 132/23, não parece comportar uma integração parcial, pois, assim sendo, integral não será.
A primeira impressão, portanto, é no sentido de que o legislador determina um novo contencioso integrado, comportando discussões que envolvam o IBS e a CBS, sem a possibilidade de fracionamento em diversos órgãos de julgamento administrativo, ainda que prevista a existência de uma instância uniformizadora de divergências.
Sabe-se que o contencioso administrativo inicia com a impugnação ao lançamento, ainda em primeira instância. E parece que desde esse momento, o contencioso administrativo deve estar integrado, sob pena de afronta aos artigos 156-B, III e §8º, da EC nº 132/23.
A prevenção ao litígio tributário é o alvo da última década, reconhecendo-se a incapacidade dos mecanismos atuais de oferecer a adequada pacificação à sociedade. Não adianta simplificar o sistema tributário sem o oferecimento de métodos de solução de conflitos igualmente eficientes.
A CBS e o IBS são tributos idênticos, com mesmos fatos geradores, bases de cálculo, hipóteses de não incidência e sujeitos passivos; mesmas hipóteses de imunidade; mesmos regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação; e mesmas regras de não cumulatividade e de creditamento (art. 149-B). Pretende-se que sejam destacados no mesmo documento fiscal, com escrituração comum e recolhidos na mesma guia de pagamento.
Podem, todavia, ser objeto de exigência por dois autos de infração idênticos. A coexistência de dois processos administrativos tributários para decidir causas que envolvam interpretação de fatos e do direito aplicável a dois tributos idênticos (CBS e IBS) pode, inexoravelmente, acarretar em soluções distintas. A mera previsão de um órgão uniformizador no âmbito do IBS não dá a solução necessária.
Imagine a lavratura de dois autos de infração em face de uma interpretação do contribuinte que aplicou, por exemplo, alíquotas reduzidas às operações com bens ou serviços devido a uma interpretação técnica envolvendo a sua atividade. Ambos os lançamentos (CBS e IBS) sujeitar-se-ão a duas impugnações e dois processos administrativos distintos. É possível que haja a perda de um prazo em um deles, provocando o trânsito em julgado de uma decisão de forma contraditória à conclusão do outro processo. É possível que o contribuinte sustente a sua defesa em laudo técnico por ele contratado e anexado a destempo em ambos os processos, sendo que em um dos casos decreta-se a preclusão e no outro aceitem a juntada extemporânea à luz da verdade material.
Ao final e sem possibilidade processual de alcançar o órgão de uniformização por força dos distintos caminhos processuais, pode-se reconhecer a obrigação de pagar apenas um dos tributos, ao mesmo tempo em que se reconhece a inexigibilidade do outro. Sem medo de errar, pode-se dizer que isso ocorrerá no modelo proposto.
O sistema processual vigente repele a prolação de decisões contraditórias ao proibir a litispendência, a concomitância ou ao obrigar a reunião de causas por conexão e continência para julgamento conjunto. Há inegável preocupação legislativa com a segurança jurídica, a estabilidade, a coerência, a isonomia e outros alicerces do sistema. Estes percalços não poderão ser evitados da forma como o processo administrativo foi apresentado no PLP nº 108/24.
A equalização de todos os valores constitucionais é complexa e o sistema deve oferecê-la no contexto de sua função estabilizadora, construindo soluções normativas dentro dos limites do próprio ordenamento jurídico.
Mais um detalhe: há os que apontam que a expressão “poderá” no §8º, do art. 156-B, da EC nº 132/23, definiria uma faculdade ao legislador complementar. Assim não penso.
A norma jurídica tem sempre a mesma estrutura lógica, qual seja, “se o antecedente, então deve-ser o consequente”. O conectivo deôntico “dever-ser” conecta o sujeito de direitos (legislador complementar) ao consequente comportamental (prever a integração do contencioso administrativo relativo ao IBS e CBS).
De forma distinta às normas naturais que interligam o antecedente e consequente em uma relação de causa e efeito, as normas jurídicas entrelaçam o antecedente e o consequente a partir de uma dedução lógica. Logo, se o legislador complementar puder integrar os contenciosos de CBS e IBS, temos que a expressão “poderá” não representa uma faculdade, mas uma obrigação decorrente de uma norma que lhe atribuiu competência para tal. Em outras palavras, se o sistema exigir a integração dos contenciosos da IBS e CBS, então a consequência dela não deve desviar.
O functor “dever-ser” é neutro. Não tem outro papel senão conectar o antecedente ao consequente da norma, podendo resultar nos modos “permitido”, “proibido” ou “obrigatório” de acordo com implicação lógica dentro do sistema no qual está inserido.
Mais do que isso, é um conectivo presente em uma norma de competência, não havendo a prescrição comportamental senão a outorga de poderes ao legislador complementar para disciplinar a matéria. Quer-se dizer que o legislador ordinário não pode. O poder executivo também não pode. A EC nº 132 define que é o legislador complementar quem pode legislar no sentido de integrar os contenciosos do IBS e CBS.
Na norma de competência, o deôntico sempre aparece no modo “obrigatório”, eis que não compete ao Estado omitir-se dos comandos constitucionais que lhe outorgam competência, ainda que nelas surjam como “poderá” ou “deverá”.
O sentido lógico do disposto no §8º, do art. 156-B, da EC nº 132/23 parece restar claro à luz dos princípios da segurança jurídica, da harmonização, da simplificação, da cooperação, da neutralidade e da coerência inerentes à reforma tributária.
A conclusão pode ser tomada às avessas, na medida em que decisões contraditórias em processos distintos envolvendo ambos os tributos representarão a constituição definitiva de créditos tributários de forma também contraditória. E parece um consenso que contradição remete à insegurança, desarmonia, não isonomia e tantas outras violações a preceitos constitucionais.
Os rumos podem ser ajustados na fase de tramitação legislativa, impulsionados pelos debates técnicos e pelas críticas construtivas, ainda que, se necessário, mediante nova emenda constitucional.
FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR EDUARDO SALUSSE – SÃO PAULO