A despeito dos avanços, há pontos no projeto de lei complementar que têm o potencial de gerar contencioso administrativo e judicial
O processo de regulamentação da reforma tributária instituída pela Emenda Constitucional nº 132/2023 inaugurou um novo capítulo esta semana com o envio do Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 108/2024. O texto visa disciplinar o Comitê Gestor do IBS e o processo administrativo tributário desse tributo, além de prever mudanças no ITCMD e no ITBI e especificar a destinação das receitas arrecadadas com a Contribuição para o Custeio do Serviço de Iluminação Pública (Cosip).
Uma leitura rápida do PLP já permite destacar algumas boas notícias quanto ao processo administrativo do IBS: a contagem dos prazos processuais em dias úteis e o recesso entre os dias 20 de dezembro e 20 de janeiro de cada ano. Essa era uma demanda antiga da advocacia e a determinação proposta pode servir de referência para o processo administrativo tributário federal. Além disso, o projeto elimina a figura do voto duplo, já que o presidente da câmara apenas se manifesta em caso de empate – ainda assim, a decisão segue nas mãos da administração, já que a presidência necessariamente será ocupada por um representante do Estado ou Distrito Federal.
Diante da extensão do PLP, meu foco neste texto estará, principalmente, voltado ao ITCMD. Desde logo mencione-se que o projeto apresentado pelo governo tem o mérito de estabelecer as normas gerais de tal tributo – medida necessária para fins de uniformização da cobrança entre os entes federativos e, ainda mais, para possibilitar a incidência do imposto nas doações ou heranças no exterior. Com isso, supre lacuna legislativa relevante e tem o potencial de ampliar os níveis de progressividade do sistema tributário nacional, também pela disciplina da tributação de bens e direitos objeto de trust no exterior. A despeito dos avanços, há pontos no projeto que têm o potencial de gerar contencioso administrativo e judicial.
O primeiro deles se refere justamente à tributação de heranças e doações no exterior: com a eventual aprovação do PLP, estaria suprida a condição posta pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para a incidência do ITCMD em tais hipóteses. Nesse caso, seria defensável afirmar a necessidade de novas leis estaduais sobre o tema, sem a possibilidade de aplicação de legislação eventualmente existente por ocasião da decisão do Supremo. Ainda que seja adequado afirmar que a ausência de normas gerais da União não deve refrear a competência dos Estados, nos termos do artigo 24, parágrafo 3º, da Constituição, o Supremo posicionou-se pela precedência da lei complementar como condição à tributação. Daí, pois, a necessidade de novas normas estaduais, sob pena da inadequada “constitucionalidade superveniente” daquelas já existentes.
O segundo ponto tem relação com a possibilidade de incidência do imposto nas transmissões entre “pessoas vinculadas” sem justificativa negocial (artigo 160, parágrafo 5º). Mesmo que se trate de medida necessária para coibir eventuais fraudes, seria desejável o detalhamento do procedimento administrativo pelo qual se provará a inexistência de tal justificativa, sob pena de renovação dos debates (administrativos e judiciais) em torno das teorias de planejamento tributário e o direito à economia de tributos. Lembremos que o ato de lançamento é ato administrativo vinculado que deve ser motivado e acompanhado das provas colhidas ao longo do procedimento de fiscalização, as quais formalizam em linguagem o fato jurídico tributário. A ausência de justificativa negocial não pode ser presumida e nem sequer sua prova negativa estar a cargo do sujeito passivo.
Por fim, mas sem pretensão de ser exaustiva, enxergo com alguma estranheza o artigo 167, inciso II do PLP, que estabelece como dies a quo para a contagem do prazo decadencial a data do “conhecimento do ato ou negócio jurídico pela administração tributária estadual ou distrital”, nos casos em que não tenha havido formalização de ato ou negócio jurídico sujeito à incidência do imposto. O dispositivo desvirtua o prazo de decadência e a atividade administrativa de fiscalização: segundo o Código Tributário Nacional (CTN), na omissão do sujeito passivo quanto ao cumprimento de seus deveres instrumentais relativos à formalização do fato jurídico tributário, deverá a administração lançar o tributo de ofício e o prazo para tanto será aquele disposto no artigo 173, inciso I do Código – essa determinação decorre do artigo 149 e respectivos incisos do CTN.
Da forma como está, o PLP possibilita que atos que o contribuinte não interpretou como passíveis de incidência do imposto estejam sempre com o prazo de decadência a iniciar. O cenário torna-se ainda mais inseguro com a combinação desse dispositivo com aquele que determina a incidência do imposto nas transmissões entre as denominadas pessoas vinculadas: a interpretação, do contribuinte, pela existência de “justificativa negocial” afastaria o recolhimento do imposto e, assim, não haveria qualquer ato ou negócio jurídico a ser formalizado. Compreensão diversa da administração, porém, somente se sujeitaria ao prazo decadencial quando a administração tomar conhecimento de tal fato e o qualificar como passível de incidência do ITCMD. A insegurança jurídica seria evidente.
Por fim, uma última observação sobre o ITBI: são bem-vindas as alterações ao CTN, de modo a adequar o artigo 35 às normas constitucionais. O mesmo não se diga, no entanto, quanto à possibilidade de incidência do imposto antes mesmo do registro da transmissão imobiliária ou do direito real relativo a imóvel. A interpretação do artigo 35-A que seria acrescido ao CTN deve se limitar aos casos de registro do bem ou direito na serventia competente, sob pena de incidência do imposto em momento não previsto no texto constitucional, como fixado, inclusive, pela jurisprudência.
Tathiane Piscitelli é professora da FGV Direito SP e colunista do blog Fio da Meada
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FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR TATHIANE PISCITELLI