Telefone: (11) 3578-8624

A REFORMA TRIBUTÁRIA: UM OLHAR ESTRANGEIRO

24 de maio de 2024

Quando perguntei a diversos tributaristas estrangeiros qual a perspectiva deles sobre a reforma tributária brasileira, surpreendi-me com um foco bem diferente do que eu havia imaginado. 

Muito se disse sobre o espelhamento entre o modelo brasileiro de tributação sobre o consumo pós-reforma tributária e o modelo de Imposto sobre o Valor Agregado. Obviamente, toda implementação efetiva de modelos importa em adaptação à cultura e elementos locais. Mas uma proximidade de modelos importa em uma maior compreensibilidade dos sistemas. Assim, em um mundo de operações globais e de competição internacional pela atração de investimentos, é inquestionável que a reforma tributária traz um sistema que fica melhor na vitrine.

Um desses pontos, obviamente, é a redução do número de tributos, com a criação de uma contribuição (a CBS) e um imposto (o IBS) com fato gerador e base de cálculo similares ao modelo europeu. Por exemplo, o IVA Europeu incide sobre operações de entregas de bens/prestações de serviço a título oneroso por um sujeito passivo agindo nessa qualidade, assim como sobre as importações de bens (artigo 2º da Diretiva IVA). Na versão brasileira, muito similar, indica-se que o IBS e a CBS incidem sobre operações onerosas com bens ou serviços. Nessa formulação abrangem-se as hipóteses anteriormente abrangidas por IPI, ICMS e ISSQN, mas também se afetam as zonas anteriormente gris. Para não haver dúvidas, entretanto, dado às discussões históricas próprias da realidade brasileira, enumeram-se algumas hipóteses que também estarão dentro desse guarda-chuva, tais como trocas, permutas, licenciamento, empréstimos etc. É chover no molhado, obviamente, mas como intenções de garantia de segurança jurídica.

De forma similar, o sistema de creditamento mudou, favorecido tanto pela concentração de tributos, eis que tributos distintos não geravam créditos entre si, quanto pela ampliação qualitativa da tributação. Nesse ponto, novamente, há um espelhamento parcial entre a legislação brasileira e a europeia. Para começar, adota-se a ideia de crédito financeiro, ou seja, a possibilidade de creditamento, “quando os bens e serviços sejam utilizados para fins das suas operações tributadas” (artigo 168, Diretiva IVA) ou, na formulação brasileira, o creditamento é possível, “excetuadas exclusivamente as operações consideradas de uso ou consumo pessoal e as demais hipóteses previstas nesta lei complementar” (artigo 28, PLP 68/24). Há um ponto, no entanto, em que o contexto da realidade brasileira se impõe, enquanto no modelo europeu se aceita que o IVA seja devido ou pago para fins de creditamento, no sistema brasileiro exige-se que o IVA tenha sido pago. Será um vestígio da interpretação da não cumulatividade à brasileira?

Seria um exercício acadêmico divertido comparar ponto a ponto em que medida o modelo IVA europeu e o brasileiro convergem. Mas não é só por se tratar de um exercício acadêmico que ao longo do tempo investidores/intérpretes vão fazer essa reflexão. A verdade é que a confluência do sistema brasileiro para uma maior racionalidade consolidando uma grande base tributável e creditável é, em si, uma vitrine. É uma vitrine conhecida. É dizer ao curioso estrangeiro: você pode entender a regra do nosso jogo. Ao olhar estrangeiro, que não entra em minúcias entre o “devido” e o “pago”, as regras do ambiente de negócios parecem mais familiares e mais simples.

Ainda a pensar de um lugar estrangeiro, as mudanças na tributação aduaneira também são importantes. No cenário pré-reforma, havia uma cascata de tributação cumulativa na importação, parcialmente reduzida com a redução dos tributos incidentes sobre a operação. De modo similar, uma tributação interna mais clara importa em mais efetividade na imunidade das exportações, consagrando-se a tributação no país de destino.

Com um impressionante mercado consumidor e uma cultura que favorece o ideal de “compra como um milionário”, os brasileiros são público-alvo das plataformas digitais internacionais. Em uma luta similar a de outros países do mundo, entendeu-se por definir que as plataformas digitais, ainda que domiciliadas no Brasil, serão responsáveis pelo recolhimento do IBS e da CBS (artigo 23). Ainda que a exequibilidade dessa disposição possa ser profundamente questionável quando se trabalha com empresas sem qualquer materialidade econômica no Brasil e que a sua operacionalização importe em criar burocracias específicas ao setor, a verdade é que essa inclusão se alinha a debates internacionais sobre a ética fiscal.

Aliás, a ética fiscal – e suas implicações potenciais práticas – é o que mais se tem discutido no exterior. Quando perguntei a diversos tributaristas estrangeiros qual a perspectiva deles sobre a reforma tributária brasileira, surpreendi-me com um foco bem diferente do que eu havia imaginado. Talvez por verem o sistema de fora começaram a comentar sobre as mudanças nos preços de transferência, nos tratados, nas CFCs brasileiras. Estavam curiosos se o Brasil, na sua intenção de tributar as plataformas digitais sobre a renda, seguiria mais o modelo da ONU ou da OCDE. Enquanto eu os ouvia, tive a impressão de que finalmente pegamos o bonde, esperemos que não tarde demais para sentar na janelinha.

Pilar Coutinho é colaboradora do blog Fio da Meada, consultora tributária na HerreveldvandenHurk & Partners, professora e pesquisadora na PUC-MG, onde fez doutorado com período de investigação na ULisboa

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR PILAR COUTINHO

 

 

Receba nossas newsletters