A proposta mexe na ponta errada do processo. O problema está na origem do contencioso tributário no Brasil.
Recentemente, voltou a tomar forma a discussão a respeito da possível extinção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), com o objetivo principal de aumentar a arrecadação de tributos. Segundo a proposição, com o fim do Carf, as duas instâncias de recursos fiscais ficariam no âmbito da Receita Federal. Podemos perceber, portanto, que os defensores da ideia entendem que o problema está na paridade de julgadores do conselho e não na quantidade de instâncias administrativas atualmente existentes.
A proposta mexe na ponta errada do processo. O problema está na origem do contencioso tributário no Brasil. Alguns fatores explicam boa parte do “excesso de litigiosidade” no país: inúmeros tributos, legislação complexa, penalidades elevadas e ineficazes, alterações frequentes de interpretação das normas pelo Fisco e Judiciário, além de uma visão excessivamente arrecadatória por parte do Fisco.
O Brasil tem quatro tributos indiretos (IPI, ICMS, ISS e PIS/Cofins) que tornam a vida do contribuinte um inferno. Cada um deles tem seu próprio fato gerador, base de cálculo, diversas alíquotas e uma quantidade exagerada de regimes especiais, exceções e benefícios fiscais. Adicionalmente, demandam o cumprimento de incontáveis obrigações acessórias, a serem cumpridas perante diversas administrações tributárias.
A proposta mexe na ponta errada do processo. O problema está na origem do contencioso tributário no Brasil.
Evidentemente, interpretações divergentes irão surgir diante de legislações complexas e, com certa frequência, mal redigidas. E o que o Fisco espera de uma situação como essa? O óbvio: que o contribuinte deve escolher a interpretação que resulte em maior imposto a pagar.
Do lado da empresa o que podemos esperar? A empresa deve aguardar que o seu concorrente adote a interpretação mais benéfica, perdendo mercado na esperança de que o concorrente seja autuado? Desnecessário dizer que aqui prevalece a máxima de Keynes com alguma alteração: “a médio prazo estaremos mortos”.
Além do mais, muitas vezes a “interpretação do concorrente” prevalece. Ainda que não concordemos com o resultado de alguns julgamentos, fato é que, por exemplo, quem acreditou no conceito “econômico” de insumos ou na exclusão do ICMS/ISS da base de cálculo da Cofins/PIS se deu bem. Por estes e por outros motivos (ex: Refis), o contribuinte tem incentivo para adotar posições que podem resultar em litígios. Neste ponto, é bom lembrar que poucos julgamentos do Carf são contrários às decisões finais de STJ e STF que, em um sistema democrático, têm a palavra final em termos de interpretação das normas.
Mas a origem da litigiosidade não vem só daí. As penalidades aplicadas são excessivamente elevadas. Por exemplo, na esfera federal, a penalidade por infração começa em 75%, podendo chegar a 225% no caso de “agravantes”. Se penalidades altas no Brasil resolvessem o problema, não estaríamos discutindo o problema do contencioso tributário.
Além de não resolver, as multas elevadas resultam em débitos muito maiores do que o valor do tributo devido. As empresas se sentem obrigadas a apresentar defesa, pois não possuem recursos para quitar o montante e porque o administrador tem resistência em reconhecer multas elevadas perante os acionistas.
No fim da história, muitas empresas quebram em decorrência dos débitos elevados. Basta conferir a lista dos maiores devedores na esfera federal para constatar dois pontos – um: muitos dos maiores devedores já estão em processo de falência ou recuperação judicial; dois: mais de 50% do total do débito corresponde a multas e juros.
Além da substituição do IPI, ICMS, ISS e PIS/Cofins por um único IVA de boa qualidade, a redução do contencioso fiscal deve focar em três pontos principais.
Inicialmente, no que se refere às penalidades, a literatura internacional (Michael Doran, 2009) nos aconselha a dar tratamento distinto e favorável àqueles que declaram suas operações em comparação aos que não as informam. Portanto, o sistema de penalidades deve ser inteiramente reformado, reduzindo-se as penalidades em geral, em especial em favor daqueles que declaram (via contabilidade e declarações fiscais) as operações que eventualmente venham a ser contestadas pelo Fisco.
Adicionalmente, deve ser estimulada a negociação entre Fisco e contribuinte para evitar o contencioso. No Brasil, a chamada transação deve ser prevista em lei e, mesmo com algumas tentativas de flexibilização (Programa Nos Conformes -SP e Portaria PGFN 360/18), continua sendo um meio muito limitado de composição. É bastante comum em outros países esta negociação, por meio da qual o Fisco, por exemplo, pode abrir mão de cobranças em relação às quais não tem provas suficientes, ou em casos nos quais os precedentes venham sendo desfavoráveis à fiscalização.
Evidentemente, o contribuinte também poderia aceitar uma parte da cobrança e quitar o débito sem multa. Tal negociação, claro, deve ser transparente e em “ambiente” devidamente regulado, de modo a evitar atos fraudulentos.
Por fim, é importante que se reforce a utilização de súmulas administrativas e judiciais. Atualmente, as súmulas vinculantes e os recursos repetitivos já são adotados pelo Fisco com o objetivo de deixar de cobrar tributos em algumas situações. A aplicação de súmulas emitidas por tribunais administrativos também já é uma realidade. Em ambos os casos, a quantidade de súmulas deve aumentar e seu uso deve ser mais frequente.
Sem atacar estes e outros problemas que geram o contencioso tributário no Brasil, a opção “extinção do Carf” acabará prejudicando as médias e pequenas empresas, que não têm recursos para garantir o débito na esfera judicial. Não pense o Fisco que tais empresas irão pagar o débito – elas, em sua maioria, vão quebrar. Ah sim, aí diminuiremos o contencioso.
FONTE: Valor Econômico – Por Eduardo Fleury