Ausente o direito à portabilidade, os dados dos usuários não poderiam ser extraídos quando desejassem migrar para um concorrente.
A realidade digital é caracterizada pela utilização dos dados como insumo principal que orienta os modelos de negócios. Como decorrência disso, os agentes econômicos empregam as mais diferentes estratégias para ter acesso a esse insumo, as quais podem, certas vezes, configurar verdadeiros abusos que violam o direito de privacidade.
Esse cenário, aliado ao fato de que não há uma tendência dos usuários de escolherem serviços privacy-friendly, talvez até mesmo por desconhecimento dos riscos envolvidos, justifica uma proteção específica aos dados pessoais, como desdobramento do direito da personalidade. Tal proteção era, até a edição da Lei n.º 13.709/2018, inexistente no nosso ordenamento.
Além de proteger diretamente os indivíduos, a nova lei, na mesma linha do regulamento europeu, foi mais longe e trouxe um interessante instituto, qual seja, o da portabilidade de dados. Esse possibilita migrações e livre trânsito dos consumidores entre diferentes serviços ou produtos no mercado digital, ao garantir que o titular receba de volta os seus dados pessoais fornecidos a um controlador ou que esses sejam transferidos diretamente ao novo serviço desejado.
Ausente o direito à portabilidade, os dados dos usuários não poderiam ser extraídos quando desejassem migrar para um concorrente.
A portabilidade, dessa forma, apresenta uma dupla essência: além de permitir que os indivíduos exercitem o seu direito à autodeterminação informacional, busca promover a concorrência em um mercado caracterizado por grandes vencedores monopolistas e com efeitos de rede, por meio da redução dos switching costs (custos de troca) e do efeito lock-in.
Sabe-se que a variedade, importante vetor para o exercício do direito de escolha dos consumidores, resta prejudicada em mercados com efeitos de rede e com custos de troca, os quais decorrem da impossibilidade de um novo fornecedor apresentar um serviço que seja compatível com o mainstream. Ou seja, é difícil que um fornecedor consiga disponibilizar um serviço concorrente que possibilite a interoperabilidade dos seus usuários com os dos serviços dominantes.
Nessa esteira, intuitivo afirmar que a entrada de novos agentes em mercados em que haja efeitos de rede e custos de troca é bastante improvável, o que representa um custo social da incompatibilidade. Essa dificuldade centra-se na inexistência de base instalada para aqueles que desejem entrar e no desinteresse dos consumidores em contratar com as novas empresas, essencialmente considerado o padrão de concorrência “tudo ou nada” e the winner takes it all.
Outro ponto de extrema relevância refere-se à atividade de coleta de dados nos mercados em que há o efeito de rede. Quanto mais consumidores são atraídos pelo valor do produto ou serviço, mais dados poderão ser coletados, o que incrementa o outro lado do mercado, qual seja, os de serviços de publicidade nos modelos de mercado de dois lados, e gera uma vantagem competitiva.
Os efeitos dessa situação podem ser observados não só nos concorrentes diretos (substitutos), mas também nos serviços complementares. Nesses dois cenários, o número de usuários é positivamente correlacionado com o volume e a qualidade dos dados. E o volume e a qualidade dos dados relacionam-se com a variedade e qualidade dos produtos e serviços, uma vez que as empresas podem oferecer melhores produtos ao analisar melhor o comportamento dos usuários e ao extrair os dados obtidos com o oferecimento do serviço.
Ausente o direito à portabilidade, os dados dos usuários não poderiam ser extraídos quando esses desejassem migrar para um concorrente, uma vez que só seria possível a mudança de plataforma ao custo de deixar essa com a consequente perda de seus dados.
Percebe-se, assim, a situação que era enfrentada pelos usuários: se houvesse aumento do preço do serviço, diminuição da proteção de privacidade, perda de qualidade, entre outros casos, o usuário ficava totalmente desprotegido, já que reduzido o seu poder de negociação. Assim, ou ficava e aceitava as novas condições impostas, ou saía sem seus dados abastecidos ao longo do tempo.
Dessa forma, de uma maneira geral e independente do mercado, caso um usuário desejasse trocar de plataforma ou serviço, precisaria fazer investimentos complementares e elevados para fornecer novamente os dados. Sem mencionar os casos que sequer é possível repetir o fornecimento dos dados. Com isso, o poder de mercado acabava consolidado na mão de agentes monopolistas ou quase monopolistas que, ao longo prazo, não teriam interesse em inovar ou adotar políticas amigáveis em termos de privacidade.
O direito à portabilidade de dados surge exatamente para enfrentar essa situação e trazer alternativas para fomentar a concorrência – estimulando a entrada e reduzindo barreiras – e proteger os usuários. Sem a portabilidade, correr-se-ia o risco de conceder vários direitos aos indivíduos com a Lei de Proteção de Dados, sem, todavia, dotá-los de ferramentas efetivas para que esses busquem serviços que respeitem os seus direitos ou que tenham políticas que mais lhe agradem.
Com efeito, justifica-se adoção da portabilidade de dados no contexto da Lei n.º 13.709/2018, seguindo a tendência inaugurada não só na União Europeia, como em várias outras jurisdições. Essa escolha trará, sem dúvidas, benefícios não só aos indivíduos, mas também ao mercado como um todo.
FONTE: Valor Econômico – Por Daniela Copetti Cravo