Decisão do STF provoca insegurança jurídica e desafia entendimento consolidado
Por mais de três décadas, é pacífico na jurisprudência a não incidência do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) quando uma empresa apenas transfere mercadorias entre seus próprios estabelecimentos.
Tudo mudou quando o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou o Tema 1.367 em 2025. De forma inesperada, a corte decidiu que a cobrança de ICMS seria válida até o fim de 2023, contrariando o que ela mesma havia decidido dois anos antes, na Ação Direta de Constitucionalidade 49, a ADC 49.
Em 2023, o STF decidiu na ADC 49, com efeitos vinculantes, que a cobrança do imposto nas transferências de mercadorias entre estabelecimentos próprios da empresa era inconstitucional. Como forma de evitar o caos, o STF atribuiu eficácia prospectiva à sua decisão, de modo que ela passasse a valer a partir de 2024.
Leitura desavisada do resultado deste julgamento poderia levar à conclusão de que tendo eficácia prospectiva, seria admissível exigir o ICMS até 2023. Essa conclusão está errada.
Leitura atenta do inteiro teor do acórdão do STF de 2023 deixa claro que o objetivo da corte ao atribuir eficácia prospectiva à sua decisão não foi o de restabelecer a incidência do ICMS nas operações analisadas, o que confrontaria décadas de jurisprudência em sentido contrário e geraria grande insegurança jurídica.
O objetivo do corte temporal fixado foi outro, mais específico: preservar as operações já realizadas, sem sustos para os contribuintes, e dar tempo para os estados se adaptarem à nova sistemática de tributação, e, especialmente, disciplinarem a transferência de créditos de ICMS entre estabelecimentos de mesmo titular.
Isso significa que o contribuinte que tivesse tributado sua operação como forma de viabilizar a transferência de crédito entre estabelecimentos não correria risco de ver seus créditos estornados, nem poderia pedir repetição de indébito. De igual forma, quem não tributou, confiando na jurisprudência, não poderia ser autuado.
Os votos proferidos evidenciam esse objetivo. O relator, ministro Edson Fachin, afirmou que a modulação serviria para preservar as operações já praticadas. O ministro Luís Roberto Barroso reforçou que o prazo até 2024 era necessário para que os Estados adaptassem suas legislações, “especialmente para viabilizar a aludida transferência de créditos entre estabelecimentos de mesmo titular”. E o ministro Nunes Marques foi ainda mais direto: a modulação impediria qualquer cobrança retroativa ou futura de ICMS sobre essas transferências.
A proclamação do resultado do julgamento da ADC 49 também reforça essa conclusão. Como lá exposto, não tivessem os estados disciplinado a transferência de créditos de ICMS entre estabelecimentos do mesmo titular até o final de 2023, ficaria automaticamente conferido aos contribuintes o direito de transferência referido. Percebe-se que a preocupação do STF não era com o não recolhimento do ICMS, mas os reflexos que essa não incidência poderia vir a ter.
Ademais, o comportamento das partes também reforça essa conclusão. Petição do Colégio Nacional de Procuradores Gerais dos Estados e do Distrito Federal (Conpeg), representando os 26 estados e o Distrito Federal, bem destacou que o que motivou as partes a pedirem a atribuição de eficácia prospectiva à decisão do Supremo foram as “consequências práticas da decisão – não ponderadas por esta excelsa Suprema Corte por ocasião do julgamento”.
As consequências práticas, supostamente não ponderadas, certamente não poderiam dizer respeito à questão central e imediata objeto do julgamento: a não incidência do ICMS nas transferências de mercadorias entre estabelecimentos do próprio contribuinte. Essa consequência prática da decisão era óbvia a todos.
Por exclusão, as questões que motivaram os pedidos de atribuição de eficácia prospectiva à decisão só poderiam dizer respeito a questões que decorriam do não recolhimento do ICMS; questões afetas à adequação dos atos normativos para disciplinar e permitir a transferência de crédito entre estabelecimentos.
Fica claro que a decisão de 2025 do Supremo não atentou aos objetivos e às especificidades da modulação de 2023, e gerou grande insegurança jurídica. De repente, empresas que não tributaram suas transferências internas pelo ICMS começaram a receber cobranças retroativas. A legítima confiança que os contribuintes depositaram em décadas de jurisprudência pacífica e uniforme foi traída.
Aguarda-se que o STF reveja sua decisão no Tema 1.367 e aplique corretamente a decisão da ADC 49. Só assim será possível restaurar a coerência institucional e garantir a segurança jurídica que os contribuintes merecem.
FONTE: JOTA – POR FELIPE KNEIPP SALOMON E VICTOR DE ASSIS VIDAL