Saiba das incertezas sobre cobrança de impostos e documentação fiscal em compras internacionais via marketplaces
A tributação das remessas de vendedores internacionais, especialmente aquelas intermediadas por marketplaces, envolve a aplicação dos novos tributos criados pela reforma tributária. Porém, a regulamentação dessa matéria tem pendências que impactam um ambiente já marcado por desafios aduaneiros, tecnológicos e jurídicos. Na prática, ainda não há um direcionamento sobre como funcionará a tributação das compras internacionais via marketplaces.
Esse é o quarto texto de uma série de reportagens que aponta as lacunas e propõe soluções com relação à reforma tributária.
Tributaristas e economistas analisam como a Lei Complementar 214/2025 e a Emenda Constitucional 132/2023 vão afetar as operações atualmente em vigor no quesito tributação sobre o consumo. No caso das remessas internacionais, especialistas ouvidos pelo JOTA relataram que os procedimentos precisam ser definidos para que haja clareza da conduta esperada dos contribuintes e, também, segurança jurídica para as operações.
Permanece indefinido o mecanismo prático de tributação para compras internacionais online. A nova legislação ainda não esclareceu como será o processo de cobrança de impostos em compras feitas por brasileiros em sites nacionais e internacionais, o recolhimento dos tributos pelos marketplaces e a emissão de documento fiscal para estas transações. Esta indefinição afeta diretamente tanto os consumidores brasileiros que realizam compras em plataformas digitais quanto os fornecedores estrangeiros que vendem para o Brasil.
Partindo para um exemplo prático, atualmente, quando uma compra em um lojista internacional é realizada pelo consumidor brasileiro, tanto o Imposto de Importação quanto o ICMS são recolhidos antes do desembaraço aduaneiro (no momento do envio, por exemplo). Funciona assim no Remessa Conforme, estabelecido em 2023 para facilitar o desembaraço aduaneiro. A questão é que ainda não foram divulgadas novas regras que incorporem o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) no programa. Sem essa resposta, consumidores e marketplaces ficam no escuro.
Para reduzir os riscos de falta da cobrança, uma opção seria que as compras intermediadas por plataformas fossem dispensadas do desembaraço aduaneiro para conferir o recolhimento do IBS e da CBS. Assim, o pagamento ocorreria já no split payment com base no valor das compras e estimados demais tributos ou taxas. Se houver necessidade de ajustes posteriores na tributação, essa apuração poderia ser feita pelos marketplaces.
Ainda, será necessário estabelecer os parâmetros técnicos de integração de sistemas entre Receita Federal, marketplaces e operadores logísticos e garantir que as futuras regulamentações infralegais estejam alinhadas aos princípios da reforma: simplicidade, transparência e segurança jurídica.
Regime de tributação simplificada
Há também outros pontos a esclarecer. Hoje, a tributação de remessas internacionais está sujeita ao Regime de Tributação Simplificada (RTS), que permite ao contribuinte pagar os tributos dos bens de uma remessa internacional de uma forma simplificada, normalmente com uma alíquota fixa. Ele vale para importação de bens, seja por remessa postal ou por encomenda aérea internacional, até US$ 3 mil.
O programa Remessa Conforme já permite que o tributo seja calculado e recolhido no momento da compra, com liberação mais rápida no desembaraço. Mas ele precisa ser atualizado para contemplar IBS e CBS, além do Imposto de Importação.
Carlos Daniel, ex-conselheiro titular do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e especialista em direito tributário e aduaneiro, explica que a transição não vai mudar o modelo em si, mas vai alterar a alíquota a ser aplicada e terá novas exigências.
“Chama a atenção a necessidade de o fornecedor estrangeiro precisar se cadastrar como o responsável tributário para fazer a remessa da mercadoria para recolher o IBS ou a CBS. Essa é uma obrigação que não existia até então para o fornecedor”, afirma.
Ele ressalta que uma das exceções desse tipo de necessidade de se cadastrar no Brasil é nos casos em que a remessa internacional na tributação simplificada seja feita por meio de uma plataforma digital. “Mas esses cadastros ainda dependem de regulamentação”, diz.
De forma sintética, o vendedor estrangeiro será responsável solidário pelo IBS e CBS devidos em uma compra; caso o comprador não pague, ele será chamado a responder também, solidariamente, por isso ele deve ser cadastrado. Não haveria necessidade de cadastro quando houver intermédio do marketplace, que vai cadastrar e ficar responsável pelo recolhimento dos tributos. Assim, o site entra como responsável pelo débito tributário na importação no lugar dos vendedores estrangeiros.
Para garantir uma adaptação coesa nesse campo, uma possibilidade seria que a inscrição do fornecedor não residente como contribuinte ou como responsável seja postergada para o final da fase de transição. Isso na tentativa de que essa exigência aconteça com o sistema mais maduro e também quando encerrada a convivência entre os tributos novos e os antigos. Contudo, a implementação das novas exigências para fornecedores internacionais requer cautela para evitar distorções competitivas no mercado.
Existe a preocupação de que, no momento da compra via plataforma digital e no pagamento pelo consumidor, a plataforma não tenha condições de calcular com precisão o IBS e da CBS devidos. “A grande dificuldade será determinar o local onde está o comprador, essencial para calcular o IBS (municipal e estadual). Pode haver alíquotas diferentes a depender do município e do estado em que esse comprador esteja. Isso pode ser um problema”, explica Carlos Daniel.
Isso vai demandar, segundo o especialista, que os marketplaces identifiquem com clareza o local do destino da mercadoria e que elas mantenham um banco de dados atualizado com todas as alíquotas aplicáveis. “Na hora do fechamento da operação, será preciso computar no preço a alíquota correta porque o meio de pagamento será o responsável pelo split payment”, explica. Com esse mecanismo, a empresa que opera o meio de pagamento separa os tributos e repassa ao vendedor apenas o valor líquido deles.
O split payment só funciona bem com um sistema robusto de georreferenciamento fiscal e integração entre entes federativos, o que o Brasil ainda não tem totalmente. Sem mecanismos precisos de definição de domicílio do consumidor e sincronização entre sistemas federais e estaduais, o cálculo correto das alíquotas ficará comprometido.
Emissão de documento fiscal
Um dos pontos mais críticos da nova legislação tributária permanece sem definição clara: a documentação fiscal das operações internacionais de e-commerce. Permanece indefinido quem será o responsável legal pela emissão dos documentos fiscais – se o vendedor internacional ou o marketplace. Também não há clareza sobre o momento exato do processo de venda em que a documentação deverá ser emitida, nem sobre qual será o formato e o conteúdo exigido nestes documentos. Além disso, ainda não foi especificado por qual sistema eletrônico estas informações deverão ser transmitidas às autoridades.
A lei determina que as plataformas digitais devam reportar as operações e importações ao Comitê Gestor do IBS e à Receita Federal, questões fundamentais seguem sem resposta. A empresa que cumprir essa obrigação não será, segundo o texto legal, a responsável pelo pagamento de eventuais diferenças entre os valores do IBS e da CBS recolhidos e aqueles devidos na operação pelo fornecedor residente ou domiciliado no país.
Mas quando o fornecedor não é residente no Brasil, há uma lacuna na lei complementar. “Não está claro como a plataforma deve proceder em relação à emissão de documentos fiscais. Sabemos da necessidade de apresentar informações ao Comitê Gestor, mas será preciso emitir documentos fiscais?”, questiona Marcos Maia, sócio responsável pelas áreas de contencioso e consultoria tributária de tributos indiretos do Maneira Advogados. Ele ressalta que falta alcançar um grau de detalhamento que dê segurança aos envolvidos nesse tipo de operação. “Isso vai depender ainda de alguns regulamentos.”
Para simplificar esse cenário, uma alternativa seria que a regulamentação infralegal não exigisse a emissão de documentos fiscais adicionais para a importação de mercadorias adquiridas em marketplaces. Isso porque essas operações já estão sujeitas a declarações exigidas no RTS, o que dá transparência às autoridades aduaneiras.
Indefinição e insegurança
Para Marília Cavagni, advogada sócia CPPV Law e doutoranda em Finanças Públicas Tributação e Desenvolvimento pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), há dificuldades para conciliar a necessidade de arrecadação com a proteção do princípio da segurança jurídica nesse novo ambiente. “Seria altamente desejável para todos os envolvidos um sistema transparente, que esclareça de maneira prévia o valor total da operação para o consumidor, que crie regras claras para as empresas e que organize de forma integrada a atuação da Receita e dos fiscos estaduais”, afirma.
Uma das possíveis consequências da ausência de regulamentação ou uma normatização falha seria, na visão dela, de impacto ao consumidor e à própria economia digital. “O consumidor precisa saber o valor final da compra no momento do check-out e é preciso evitar surpresas de cobranças na entrega. Além disso, modelos de tributação muito complexos ou sem clareza podem afastar plataformas internacionais do mercado brasileiro”, avalia Marília. “A construção dessa regulamentação é uma oportunidade de projetarmos um sistema tributário mais transparente, eficiente e tecnologicamente moderno”, acrescenta.
Na busca por soluções sustentáveis para todos os envolvidos, cada ator tem, conforme aponta a especialista, um papel complementar. A Receita Federal é fundamental para a implementação na prática e para a criação dos sistemas que viabilizarão a cobrança de forma eficiente, por exemplo.
FONTE: JOTA – POR ESTÚDIO JOTA