Pelo menos 12 decisões recentes de São Paulo, Santa Catarina e Mato Grosso encerraram reestruturações de empresas
O aumento recorde de recuperações judiciais no país tem provocado o uso abusivo do instituto. Empresas têm se aproveitado da onda, segundo especialistas, para se beneficiar da suspensão das cobranças — o chamado stay period, válido por até 360 dias — sem obedecer aos requisitos legais. Isso tem feito o Judiciário encerrar ou suspender processos considerados indevidos. Em um deles, por pouco não houve a decretação de falência. Outros casos foram levados ao Ministério Público e Polícia Civil, por indícios de fraude e omissão de informações contábeis.
Pelo menos 12 decisões recentes de São Paulo, Santa Catarina e Mato Grosso extinguiram recuperações de empresas que sequer apresentaram documentação básica para andamento do processo. Segundo especialistas, são casos de litigância abusiva, um tipo de litigância predatória em que há desvio de finalidade. Nas sentenças, há inclusive aplicação de multa, de até 20% do valor da causa, por litigância de má-fé e “ato atentatório à dignidade da justiça”.
Em algumas ações, o devedor tem mais débitos extraconcursais (como aqueles contraídos após o deferimento da reestruturação judicial) do que os submetidos à recuperação, de modo que só serviriam para equalizar menos de 10% do total da dívida. Ou seja, não caberia a recuperação judicial. O real intuito era de obter a declaração de determinados bens como essenciais para a atividade empresarial, o que na prática blinda este patrimônio durante o stay period.
Seria o caso da RRMG Transportes, julgado pela 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). Para os desembargadores, houve “indícios contundentes da utilização fraudulenta da recuperação”. Isso porque mais de 90% dos créditos eram, na verdade, extraconcursais, oriundos de financiamentos para a compra de caminhões e outros veículos por alienação fiduciária. Só havia três credores concursais, com dívida total de R$ 520 mil (7,5% do passivo).
“O pedido recuperatório dedica-se, exclusivamente, à declaração de essencialidade de caminhões, para que fiquem com a recuperanda”, diz o relator, desembargador Grava Brazil. Deferir esse tipo de recuperação, acrescenta ele, “desacredita o instituto e traz insegurança jurídica e efeitos nefastos para o mercado de crédito” (processo nº 2391019-43.2024.8.26.0000).
César Augusto Terra, do Gabardo & Terra Advogados Associados, que atuou pelo Banco Mercedes Benz no recurso, afirma que a decisão é emblemática. “Reforça a necessidade de interpretação técnica, criteriosa e comprometida com a preservação da segurança jurídica.”
Em outros casos, empresas não têm listado todos os ativos, passivos e credores. Segundo fontes, seria uma forma de barganha com fornecedores, que pedem para serem deixados de fora da reestruturação. Assim, não se submetem aos deságios dos planos para continuar operando com a empresa.
É o que teria ocorrido, segundo credores, na reestruturação bilionária do Grupo Safras, levando à suspensão do processo por “falta de transparência documental” e “irregularidades financeiras”. A suspensão foi mantida pelo Superior Tribunal de Justiça (TutCautAnt 981). No Ministério Público do Mato Grosso, segundo o órgão, há sete incidentes processuais para investigar indícios de fraude, hoje suspensos.
Em nota ao Valor, o Grupo Safras afirma que teve deferida sua recuperação judicial pelo juízo de Sinop (MT), após parecer favorável do perito judicial e do Ministério Público e que, em liminar, a desembargadora Marilsen Adário [do TJMT] suspendeu monocraticamente o processo. “O competente recurso para apreciar o mérito dessa liminar já foi apresentado e o Grupo aguarda essa decisão para os próximos passos de sua reestruturação”, diz.
Na reestruturação da rede de supermercados Grupo Belém, na cidade de Mafra (SC), a empresa não apresentou documentos obrigatórios, como balanços de fluxo de caixa, e não pagou a administração judicial do caso. O pedido de recuperação foi feito em julho de 2024 e a juíza do caso deu oportunidade para complementar a documentação, o que não foi feito.
Após perícia, verificou-se que nem todas as empresas conseguiriam se soerguer. A solução foi extinguir a ação, com indicação para o Ministério Público apurar possíveis crimes. Para a juíza Aline Mendes de Godoy, da Vara Regional de Falências e Recuperações Judiciais e Extrajudiciais da Comarca de Concórdia, houve violação do dever de transparência e boa-fé (processo nº 5007943-43.2024.8.24.0019).
“A função social da empresa exige sua manutenção, mas não a qualquer preço”, diz a magistrada. “A recuperação judicial não pode ser transformada em zona de conforto ou escudo protetivo artificial, mas sim deve constituir-se em verdadeira arena de reestruturação, com esforços diligentes e propositivos voltados à superação da crise.”
A juíza Andréa Galhardo Palma, da 2ª Vara Regional de Competência Empresarial e de Conflitos Relacionados à Arbitragem do Foro Especializado das 1ª, 7ª e 9ª RAJ, do TJSP, extinguiu oito casos similares no primeiro semestre. “No curso do processo, verificou-se que a documentação era falsa, a lista de credores não batia e a empresa começava a não remunerar o AJ [administrador judicial]. A empresa não estava viável economicamente, que é um requisito para a recuperação. Estava ganhando tempo com o stay [period] e se aproveitando do stay”, afirma.
A juíza Maria Rita Dias, da 3ª Vara de Falências e Recuperação Judicial de São Paulo, reforça que o melhor combate a esses casos é fazer um controle rigoroso da documentação inicial. “O tribunal se preocupa em cumprir o sistema da lei de recuperações e falências. O juiz não vai interferir no mérito. O controle do abuso é feito pelos requisitos de admissibilidade da inicial, meramente formal e processual”, diz.
Há ainda casos como o da transportadora Graneleiro, em Mirassol (SP). A empresa afastou a consultoria Siegen — eleita pelos credores como “watchdog”, para acompanhar as movimentações financeiras da empresa. O plano previa que ela só poderia ser destituída ou substituída com anuência dos credores. Mas em junho a Graneleiro a destituiu unilateralmente e vedou acesso à sua contabilidade. Fundos alegam irregularidades com recebíveis.
Para o juiz André da Fonseca Tavares, da 2ª Vara do Foro de Mirassol, isso “configura manifesto descumprimento do plano de recuperação” e é “fundamento suficiente para a convolação da recuperação judicial em falência”. Afirma que a conduta pode ser enquadrada como sonegação de informações, o que em processos de insolvência pode implicar pena de dois a quatro anos e multa.
Em liminar, determinou o retorno da consultoria ao caso, sob pena de decretar a falência. A Graneleiro chegou a recorrer, alegando “má-fé” dos credores e “inveracidade” das informações prestadas por eles. Porém, sem sucesso (processo nº 1000878-95.2023.8.26.0358).
O juiz acatou um pedido de fundos de investimento em direitos creditórios (FIDCs) representados pelo FZ Advogados Associados. Alegam que a empresa se apropriou de R$ 9 milhões de recebíveis já pagos. Segundo Felipe Zago, do FZ Advogados, a Graneleiro alterou a data de vencimento dos títulos, o que a permitia receber em duplicidade — dos fundos e parceiros comerciais.
Desde junho de 2023, a administração judicial do caso, feita pela Laspro Consultores, averigua denúncias de fraude e lesão a fundos via incidentes processuais. Há ainda investigação no Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), iniciada com a mais recente decisão.
André Rocha, da consultoria Triunfae, diz que casos como esses são comuns e existem previsões na Lei de Recuperação, nº 11.101/2005, para punir abusos e fraudes, como afastar os gestores e desconsiderar a personalidade jurídica da empresa para atingir bens dos sócios. “O devedor, quando pede recuperação, usufrui de um favor legal, então tem que cumprir as ordens judiciais.”
Segundo a juíza e secretária-geral do Fórum Nacional de Recuperação Empresarial e Falências (Fonaref) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Clarissa Tauk, “há uma percepção clara de crescimento dos casos de recuperações judiciais que apresentam indícios de abuso de direito”.
Para ela, falhas na fiscalização, cenário econômico desafiador e maior sofisticação das fraudes explicam essa alta. “A complexidade dos casos, a falta de estrutura adequada em órgãos do Judiciário e a dificuldade em identificar manipulações financeiras contribuem para que práticas abusivas passem despercebidas.”
O Judiciário, acrescenta, tem atuado para coibir abusos, com a extinção de processos. “A extinção sem convolação em falência pode ocorrer em situações específicas, como ausência de apresentação do plano no prazo legal ou desistência da devedora”, afirma. “Contudo, em casos de abuso, a tendência é pela convolação em falência, para proteger os credores e evitar que a devedora se beneficie da própria torpeza.”
Joelson Sampaio, economista da Fundação Getulio Vargas (FGV), destaca que as recuperações judiciais abusivas se devem pelo comportamento das empresas e de um mercado gigante de escritórios que apoiam a iniciativa, “que se torna uma estratégia de tentar alongar e, até mesmo, suspender as dívidas para, com isso, tentar obter uma sobrevivência maior, mais do que pelas questões macroeconômicas, que hoje apontam para um cenário desafiador e que tende a perdurar”.
O Valor procurou advogados e demais empresas mencionadas, que não deram retorno até o momento.
FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR MARCELA VILLAR – SÃO PAULO