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ENTIDADES QUEREM FATIAR A REFORMA DO ATUAL CÓDIGO CIVIL

23 de junho de 2025

Projeto de Lei nº 4, de 2025, pretende alterar mais de 1,2 mil dispositivos que tratam de temas como família, sucessão, indenização e contratos.

Protocolada no início deste ano no Congresso Nacional, a proposta de reforma do Código Civil sequer começou a tramitar e já vem provocando manifestos. Dezenas de entidades, que representam desde advogados até indústrias, contestam a possibilidade de o Projeto de Lei (PL) nº 4, de 2025 – elaborado para modernizar a norma – ser “aprovado com urgência”. Já os defensores da reforma garantem que todos poderão debater o texto.

Alguns representantes dessas entidades afirmam preferir a retirada do PL de tramitação para que cada tema abordado seja discutido em um projeto de lei separado, o que seria uma espécie de “fatiamento”.

O texto foi escrito por um grupo de 38 juristas. Eles formaram uma comissão temporária, instituída em agosto de 2023 a pedido do ex-presidente do Senado Rodrigo Pacheco. A comissão propôs a alteração de mais de 1.200 artigos do atual código, editado no ano de 2002 com 2.046 dispositivos. O que incluiu a criação de um novo capítulo, voltado aos ativos digitais, como criptomoedas e acervos de imagens em redes sociais.

É pacífico que diversas das mudanças propostas relacionadas ao Direito de Família vão influenciar na divisão de herança. O casamento, por exemplo, será “entre duas pessoas” em vez de um homem e uma mulher, levando em consideração a união homoafetiva. Já sugestões referentes à responsabilidade objetiva poderão impactar o caixa das empresas, com a criação da “indenização de caráter pedagógico”, por exemplo.

Segundo o parágrafo 3º do artigo 944-A do PL, ao estabelecer a indenização por danos morais, o juiz poderá incluir uma sanção em dinheiro de caráter pedagógico, “em casos de especial gravidade, havendo dolo [intenção] ou culpa grave do agente causador do dano ou em hipóteses de reiteração de condutas danosas”. Seria como uma multa para que o dano não se repita.

A Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg) lidera, com outras entidades representativas da sociedade civil, um movimento nacional para que o setor produtivo participe das discussões sobre a proposta.

Segundo Paulo Ribeiro, assessor de integridade e governança na Fiemg, se o texto ficar como está, as empresas passarão a correr um risco maior de serem condenadas a pagar indenização, sem antes poder calcular quanto deve provisionar para arcar com isso. “As modificações propostas devem gerar uma indústria de ações porque, ao não se exigir mais culpa, bastará o dano para a responsabilização”, diz. “Uma ação judicial qualquer poderá acabar com uma empresa de pequeno porte”, afirma.

Além disso, as menções sobre a função social dos contratos no PL, diz o assessor, “abriram uma facilidade enorme para o Poder Judiciário rever os termos de, praticamente, todos os contratos”. Para ele, isso afetará a sociedade em geral porque o Judiciário ficará sobrecarregado.

Por essa razão, segundo Ribeiro, até o fim deste mês, a entidade criará o “Observatório da Reforma”, composto por grupos temáticos que serão formados por profissionais de diferentes áreas para acompanhar a tramitação do PL e apresentar alternativas.

Outras 20 entidades do mundo jurídico assinaram uma carta para defender publicamente que a tramitação do PL passe por todas as comissões temáticas do Congresso, além da possibilidade de apresentação de emendas, conforme determina o regimento interno do Senado. De acordo com a interpretação delas, ao protocolar a proposta, teria ficado implícito que o PL deveria ser aprovado até o fim deste ano.

Para Diogo Leonardo Machado de Melo, professor universitário e presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), entidade que participa dos manifestos, o PL propõe mudanças em regras estruturais que não haviam sido debatidas antes, como o reconhecimento de paternidade por DNA extrajudicial. “Essa tutela tem que ser do Judiciário porque se o pai é incluído no registro da criança já é possível que isso se reflita na contratação de seguro, na matrícula da escola, etc. As consequências são amplas”, diz.

Melo também critica a possibilidade de o juiz impor a indenização de caráter pedagógico. “Esse poder dado ao magistrado de fixar uma indenização punitiva foge totalmente do critério atual, objetivo, estabelecido no artigo 402 [perdas e danos]”, diz o professor. Sobre o capítulo que trata de ativos digitais, Melo questiona: “será que o que está em debate no STF sobre o marco civil da internet não interferirá?”.

“Gostaríamos que quem quer arquivar ou sabotar o PL viesse debater” — Flavio Tartuce.

O professor aponta ainda que o Código Civil francês, chamado de código napoleônico, foi instituído no ano de 1804, sofreu uma reforma em 2015 e foram alterados menos de 300 dispositivos, com foco no direito das obrigações (práticas negociais).

Já o presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), que apoia o projeto e participou da elaboração do texto, Rodrigo da Cunha Pereira, lembra que atual código tramitou por 20 anos no Congresso e quando foi aprovado já não fazia mais sentido, estava desatualizado. “Mas, claro, que isso não quer dizer que a aprovação tem que acontecer do dia para a noite. Certamente, os debates vão levar anos ao passar por todas as comissões pelas quais todos os PLs passam”, afirma.

Segundo Pereira, uma comissão do IBDFAM vai acompanhar a tramitação do PL e enviará sugestões para a melhoria do texto. “Numa sociedade democrática, o normal é isso, uma comissão de juristas faz a proposta sabendo que sofrerá alterações”, afirma.

Muitas das proposições do IBDFAM, por serem muito ousadas, diz Pereira, não foram aceitas na elaboração do anteprojeto. “Na parte do casamento, por exemplo, queríamos que constasse o texto ‘união entre pessoas’ em vez de ‘entre duas pessoas’ para considerar também as relações poliafetivas”, diz.

O relator do anteprojeto, Flavio Tartuce, destaca que não há regime de urgência para a tramitação da reforma. “O PL vai passar pelas comissões temáticas e o trâmite vai ser de, no mínimo, dois anos. Não há pressa”, diz. Ainda segundo ele, as entidades que agora se manifestam foram oficiadas, antes da realização de audiência pública no Congresso sobre a reforma, para participarem dos debates sobre o anteprojeto, mas não mandaram nada.

Tartuce também contesta que a reforma possa prejudicar o mercado. “O criticado conceito da função social do contrato já está no código, por exemplo, no parágrafo único do artigo 2035, que prevê que convenção não pode contrariar a função social do contrato”, afirma. Sobre o novo critério para cálculo de indenização, Tartuce explica que ele foi incluído no anteprojeto com base em jurisprudência (REsp 1.152.541) do Superior Tribunal de Justiça (STJ). “Hoje, no Brasil, é mais barato descumprir o contrato porque o valor dos danos morais é baixo”.

“Gostaríamos que quem quer hoje arquivar ou sabotar o PL estivesse conosco para debater o texto e melhorá-lo, que é o que a maioria está propondo e é a atitude democrática que se espera”, afirma o relator.

FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR LAURA IGNACIO — DE SÃO PAULO

 

 

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