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A TRIBUTAÇÃO DO DESÁGIO EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL

23 de junho de 2025

Como o posicionamento da Receita Federal na SC 74/25 impacta o planejamento financeiro das empresas em recuperação judicial ao definir a homologação do plano como marco temporal para tributação do deságio.

Recentemente foi divulgada a SC 74 da Receita Federal estabelecendo a homologação do plano de recuperação judicial – ou seja, a concessão da recuperação judicial, na forma do art. 58 da lei 11.101/05 – como o marco temporal para fins de reconhecimento de fato gerador a ensejar a tributação dos descontos (haircut) obtidos em recuperações judiciais.

A resposta da Receita Federal veio após anos sem que houvesse pacificação sobre o tema, permitindo no decorrer da última década três possíveis interpretações e caminhos sobre o instante em que se deve contabilizar – e tributar, no entendimento de que o haircut equivale à receita – o deságio: (i) no mesmo momento da homologação judicial; (ii) aplicação parcial do deságio por ano, mediante o cumprimento parcial; (iii) baixa da dívida apenas pelo valor pago e contabilização do deságio ao final do período de pagamento.

As justificativas dos contribuintes eram diferentes e defensáveis por vários ângulos jurídicos, destacando que o principal argumento suscitado pelos devedores em recuperação judicial era a revogabilidade do desconto obtido em caso de descumprimento do plano de recuperação judicial, condição esta prevista expressamente no art. 61, §2º da lei 11.101/05, implicando na reconstituição integral dos direitos dos credores (i.e., que todo e qualquer deságio obtido é revertido em caso de falência).

Para melhor compreensão, necessário destacar que plano de recuperação judicial possui natureza dual (contratual e impositiva) e tem como seu principal efeito a novação das obrigações do devedor por força do art. 59 da lei 11.101/05, tendo sua completa implementação condicionada ao cumprimento pela devedora do novo pacto celebrado. E não apenas no período de 2 anos de fiscalização após a concessão da recuperação judicial (art. 61 da lei 11.101/05), mas ao longo de todo o período em que perdurarem os pagamentos lá fixados, já que a própria decisão de concessão da recuperação judicial tem força de título executivo judicial (art. 59, § 1º da lei 11.101/05).

Plano de recuperação judicial tem condição resolutiva ou suspensiva?

O motivo da novação estar atrelada ao cumprimento integral da nova condição de pagamento proposta pelo devedor e aceita pelos credores no cenário ordinário ou, ainda, pelo plano alternativo apresentado por credores de acordo com a inclusão promovida pela lei 14.112/20 ao incluir o § 4º do art. 56 da lei 11.101/05 é óbvio e pode, em nossa leitura, ser identificado como uma condição suspensiva, diferentemente do conceito aplicado pela Receita Federal de que, na espécie, o plano de recuperação judicial possui condição resolutória e não suspensiva: uma vez implementada, ela desfaz os efeitos dos descontos concedidos, reconstituindo os direitos dos credores nas condições originalmente contratadas.

Necessário, portanto, fazer um parêntesis para aprofundamento sobre a diferenciação entre condição suspensiva e resolutiva. Do ponto de vista da estrutura negocial, ambas  se configuram como elementos acidentais do negócio jurídico, na medida em que não integram o seu arcabouço essencial de forma abstrata, sendo introduzidas por ato de vontade das partes sujeitas ao negócio jurídico, seja por imposição ou adesão. Sua natureza facultativa decorre da autonomia privada, pois não são exigidas por imposição legal, mas sim estipuladas segundo os interesses específicos dos envolvidos. Todavia, uma vez integradas ao conteúdo do plano de recuperação judicial, por exemplo, essas condições, sejam elas suspensivas ou resolutórias, assumem relevância determinante, convertendo-se em aspectos fundamentais para a constituição ou extinção dos efeitos jurídicos pretendidos. Em razão disso, verifica-se uma transmutação: o que é objetivamente acidental pode adquirir caráter essencial sob a ótica subjetiva da convenção entre as partes estipulada em planos de recuperações judiciais.

Com base na teoria geral dos negócios jurídicos (arts. 104 e 121 a 130 do CC), é possível defender que as obrigações previstas no plano de recuperação judicial, embora possam ser exigíveis, não possuem caráter definitivo justamente por estarem subordinadas à ocorrência de evento futuro e incerto: a superação da situação de crise e o prosseguimento da atividade empresarial, que é justamente o principal objetivo das reestruturações e foi consagrado no art. 47 da lei 11.101/05.

Esse evento incerto é a própria viabilidade econômica do cumprimento do plano, o que poderia configurar, juridicamente, uma condição suspensiva: a plena e completa eficácia do plano está vinculada à manutenção da regularidade da empresa em recuperação e à capacidade desta de gerar resultados para cumprir suas obrigações conforme o cronograma pactuado, sob pena de ter sua falência decretada e todos os credores terem seus créditos reconstituídos de acordo com os instrumentos originais de dívidas.

Definir se as obrigações instituídas no plano de recuperação judicial estão sob efeitos de condição suspensiva ou resolutória é determinante para que se saiba o momento do fato gerador da tributação do deságio, em observância aos arts. 116 e 117 do CTN, que trata exatamente da diferenciação temporal entre as duas condições:

Art. 117. Para os efeitos do inciso II do art. anterior e salvo disposição de lei em contrário, os atos ou negócios jurídicos condicionais reputam-se perfeitos e acabados:

I – sendo suspensiva a condição, desde o momento de seu implemento;

II – sendo resolutória a condição, desde o momento da prática do ato ou da celebração do negócio.

A Receita Federal, ao então identificar e classificar que o plano de recuperação judicial está sob condição resolutória, o fez com o argumento de que “uma vez concedida, as dívidas restam, desde já, reduzidas, motivo pelo qual é esse o momento em que a consulente deve proceder ao reconhecimento da receita gerada em contrapartida à diminuição de seu passivo.”

Desalinhamento entre o entendimento da Receita Federal na SC 74 e o princípio da preservação da empresa

Adiciona-se à controvérsia sobre a classificação da espécie de condição, a qual se submete os efeitos do plano de recuperação judicial, o verdadeiro e sobressalente desalinhamento entre o impacto financeiro que será imposto às empresas devedoras em regime de recuperação judicial.

Se a lógica, intenção e princípio que foram consagrados na lei 11.101/05 se pautam justamente na preservação da empresa e na divisão equilibrada de ônus entre credores sujeitos e não sujeitos, não parece ser razoável que imediatamente após a concessão de um desconto que, em muitos casos, tende a ser expressivo e que representa um verdadeiro esforço por parte dos credores sujeitos ao processo de reestruturação, o devedor tenha que pagar 34% de tributos calculados sob o lucro real apurado sobre o valor reduzido de seu passivo. É, praticamente, substituir em parte a titularidade das dívidas dos credores sujeitos à recuperação judicial e o Fisco.

Em uma recuperação judicial de R$ 100.000.000,00, em que o desconto concedido seja de 70% (setenta por cento) – sem adentrar, aqui, nas divisões e diferenciação de propostas de pagamento que são possíveis entre credores de naturezas diversas e na possibilidade de criação de subclasses – o devedor deverá pagar IRPJ e CSLL que, juntos, somam o equivalente a 34% (trinta e quatro por cento) calculados sobre o montante de redução da dívida, que foi de R$ 70.000.000,00 , representando, neste exemplo, R$ 23.800.000,00.

Ainda que seja possível o abatimento com créditos de prejuízo fiscal sem que exista a limitação de 30% (trinta por cento) prevista no art. 58 da lei 8.981/1995, nem sempre é correto presumir que o devedor tenha prejuízo acumulado para fazer frente a este novo custo. Além disso, o prejuízo fiscal também é utilizado em sua integralidade como moeda de troca justamente para viabilizar a transação fiscal como forma de obtenção da regularidade fiscal, na forma do art. 10-C da lei 10.522/02 e art. 11 incs. IV e V da lei 13.988/20.

Não parece sensato que atribuir este ônus excessivo ao devedor que enfrenta um processo de recuperação judicial justamente para viabilizar a manutenção de suas atividades diante de um cenário de crise econômico-financeira, além de ser injusto que os credores arquem com deságio expressivo e em contrapartida o Fisco receba parte dos valores que, em análise crítica, poderiam, inclusive, ser destinados aos próprios credores da recuperação judicial.

Relevante destacar que não se está, aqui, questionando a necessidade de regularidade fiscal a qual as empresas em recuperação judicial devem obter como condição precedente de terem a homologação de seus planos, na forma dos arts. 57 da lei 11.101/05 e 205 e 206 do CTN; o que se pondera é a constituição de uma nova dívida (i.e., tributação do novo fato gerador para apuração de IRPJ e CSLL, na forma do art. 50-A, inc. II da lei 11.101/05) para o devedor em recuperação judicial que é calculada e definida, nos termos do posicionamento da Receita Federal exarado na SC 74, (i) imediatamente após a homologação do plano de recuperação e (ii) em percentual expressivo que pode comprometer a própria viabilidade da empresa em reestruturação.

É fato que caberá ao devedor também provisionar o pagamento desta tributação sobre o deságio que seja alcançado em curtíssimo espaço de tempo, para além dos outros custos inerentes à reestruturação (tais como custas processuais, honorários do administrador judicial, assessorias jurídicas e financeiras etc.). O que se pode esperar é que esta posição da Receita Federal penalizará, ainda mais, os credores sujeitos à recuperação judicial, sobretudo os quirografários, com possíveis períodos de carência mais extensos.

Haircut deve ser equiparado a receita para fins de incidência de tributação?

O cerne da questão vai além de todo o exposto: por muitos anos houve discussão no âmbito judicial sobre a (des)necessidade da tributação do desconto obtido após a conclusão de processos de negociação coletivas instrumentalizadas por planos de recuperação judicial; os contribuintes, naturalmente, defendiam que não se pode equiparar o deságio com o ingresso de recursos financeiros.

A Receita Federal, na SC tratada neste artigo, não abordou sobre a incidência ou não, de PIS/PASEP e Cofins sobre o deságio, já que o próprio art. 50-A, inc. I da lei 11.101/05 já é absolutamente categórico ao prever que a “receita” obtida pelo devedor não será computada para fins de cálculo das contribuições sociais.

Embora para os casos de reestruturação pareça que o tema do recolhimento das contribuições de PIS/PASEP e Cofins já foi superado, o CARF – Conselho Administrativos de Recursos Fiscais já vinha se posicionando. Em 2017, o CARF afastou a incidência de PIS e Cofins sobre a redução do passivo e trouxe em sua decisão importante diferenciação entre o conceito jurídico e contábil da redução do passivo, ainda que tal redução importe em melhora do patrimônio líquido da empresa:

RECEITA BRUTA. CONCEITO CONTÁBIL E JURÍDICO. REDUÇÃO DE PASSIVO. O conceito contábil de receita, para fins de demonstração de resultados, não se confunde com o conceito jurídico, para fins de apuração das contribuições sociais.

Recurso Voluntário Provido. Crédito Tributário Exonerado.

(CARF, Processo 16327.720855/2014-11, Acórdão 3402-004.002, Data da Sessão 30/3/2017)

No caso acima julgado pelo CARF, não estava em pauta uma mera redução de passivo por perdão de dívida; o referido julgado envolvia uma operação de dação em pagamento de um ativo de valor contabilmente menor que a dívida e, naquele ambiente fático, os julgadores se posicionaram pela diferenciação a respeito da redução do passivo e ingresso efetivo de receita para fins de exigência de PIS e Cofins.

Tal posicionamento sobre a redução do passivo ser computado na base de cálculo, no entanto, não é unificado. Ao analisar a incidência de PIS e Cofins sobre descontos obtidos em uma recuperação judicial, o CARF reconheceu a validade da referida cobrança, em acórdão assim ementado:

REMISSÃO. DÍVIDA. PASSIVO. TRIBUTAÇÃO. A remissão de dívida importa para o devedor (remitido) acréscimo patrimonial (receita), por ser uma insubsistência do passivo, cujo fato imponível se concretiza no momento do ato remitente. O deságio obtido na remissão de dívida em plano de recuperação judicial no qual o Credor submete-se à cláusula de irrevogabilidade e irretratabilidade opera seus efeitos tributários com o pagamento acordado.

(CARF, Processo 15746.720124/2020-11, Acórdão 1401-006.962, Data da Sessão 14 de maio de 2024).

Conquanto exista, sim, uma diferença dos conceitos de receita financeira e operacional para fins de apuração de base de cálculo, os contribuintes também não vêm logrando êxito nas tentativas de afastar a incidência de IPRJ e CSLL no âmbito judicial:

TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. IRPJ. CSLL. REMISSÃO DE DÍVIDA E OBRIGAÇÕES DE MODO NÃO ONEROSO. INGRESSO PATRIMONIAL SUJEITO À TRIBUTAÇÃO. RECURSO DESPROVIDO. 1. Cuida-se de mandado de segurança em que se requer o reconhecimento do direito de não sujeição ao recolhimento do IRPJ e da CSLL sobre os valores de dívidas e obrigações remitidas (perdoadas) de modo não oneroso. 2. A remissão de dívidas importa em redução de passivo e, consequentemente, em ingresso patrimonial sujeito à tributação sobre a receita ou faturamento, nos termos do art. 195 da Constituição Federal. 3. Salvo previsão legal em sentido contrário, qualquer perdão de dívida, seja de tributos, com fornecedores, com sócios ou desconto financeiro, está sujeita à incidência do IRPJ e da CSLL, haja vista que representa acréscimo patrimonial para o devedor, repercutindo na base de cálculo das referidas exações (TRF 3ª Região, 3ª Turma, ApCiv – APELAÇÃO CÍVEL – 5003769-86.2021.4 .03.6106, Rel. desembargador federal ADRIANA PILEGGI DE SOVERAL, julgado em 10/12/2024, Intimação via sistema DATA: 10/12/2024). 4. Apelação desprovida.

(TRF-3 – Processo 5031070-55.2023.4.03.6100, Relator: Des. Federal MAIRAN GONCALVES MAIA JUNIOR, 6ª Turma. Data de Julgamento: 22/04/2025 e Data de Publicação: 6/5/2025)

Conclusão

Se o posicionamento recente da Receita Federal na SC 74 prevalecer, deverão as empresas em recuperação judicial começarem a provisionar, por segurança, os pagamentos de IRPJ e CSLL incidentes sobre o deságio obtido no plano de recuperação judicial concomitantes à decisão de homologação, já que terá como fato gerador a própria concessão (art. 58 da lei 11.101/05), ainda que os créditos sujeitos possam ser reconstituídos em sua integralidade em caso de descumprimento do plano de recuperação judicial e eventual convolação em falência (art. 61, § 2º da lei 11.101/05).

FONTE: MIGALHAS – POR GIOVANNA MICHELLETO

 

 

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