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IPVA E SELETIVIDADE AMBIENTAL: INSTRUMENTO DE POLÍTICA PÚBLICA OU SOFISTICAÇÃO RETÓRICA?

17 de junho de 2025

Se mal calibrada, a seletividade ambiental pode onerar ainda mais os contribuintes de menor renda, aumentando as distorções distributivas.

O presente artigo deriva da palestra proferida durante o XXXVIII Congresso Brasileiro de Direito Tributário, promovido pelo Instituto Geraldo Ataliba (IGA/IDEP), em maio de 2025. Na ocasião, apontou-se a possibilidade de aplicação de critérios ambientais na fixação das alíquotas do IPVA, à luz das inovações introduzidas pela Emenda Constitucional nº 132/2023.

A partir desse ponto de partida, propôs-se uma reflexão mais ampla sobre os limites constitucionais, institucionais e distributivos envolvidos na tentativa de transformar o IPVA em instrumento de política pública ambiental, observando as particularidades do sistema tributário brasileiro e os riscos de captura retórica do discurso ambiental.

Com a promulgação da Emenda Constitucional nº 132/2023, que instituiu o novo regime do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), o debate sobre a função extrafiscal dos tributos foi revitalizado. A reforma, contudo, não se restringiu ao desenho do novo imposto sobre o consumo. Ela também alterou a redação do artigo 155, §6º, II da Constituição Federal, autorizando expressamente a diferenciação de alíquotas do IPVA com base no tipo, valor, utilização e impacto ambiental do veículo.

Em tese, a nova redação constitucional pavimenta o caminho para uma tributação seletiva ambientalmente orientada, com o objetivo de desincentivar o uso de veículos mais poluentes e estimular padrões de consumo sustentáveis. O uso do IPVA como ferramenta de política pública ambiental, entretanto, requer cuidados técnicos, institucionais e distributivos que ainda não parecem suficientemente enfrentados.

O ponto de partida: o mercado automotor brasileiro

Antes de se propor qualquer seletividade ambiental, é necessário entender o pano de fundo sobre o qual ela incidirá. O Brasil apresenta hoje uma frota envelhecida, com idade média superior a 10 anos, segundo dados do Sindipeças. Enquanto isso, o preço médio de veículos novos supera os R$ 140 mil, revelando um descolamento entre a pauta ambiental e a acessibilidade econômica da população.

Simultaneamente, o transporte público apresenta sérias limitações estruturais e operacionais, conforme apontam estudos da NTU e do IPEA. A precariedade do sistema coletivo acarreta, como externalidade, a manutenção da dependência do transporte individual mesmo entre faixas de renda mais baixas. Assim, sem uma melhoria coordenada na infraestrutura urbana, a seletividade ambiental pode recair de modo regressivo sobre grupos que não têm alternativas de mobilidade.

Desenho constitucional e desafios jurídicos

Embora a nova redação do art. 155, §6º, II permita o uso de critérios ambientais, é essencial observar os limites impostos pelos princípios da isonomia tributária (art. 150, II) e da capacidade contributiva (art. 145, §1º). A diferenciação de alíquotas deve, portanto, estar baseada em parâmetros objetivos e razoáveis, que permitam distinguir entre diferentes situações de fato sem ferir a igualdade tributária.

A ausência de critérios técnicos claros pode não apenas gerar insegurança jurídica, mas também abrir margem para questionamentos no âmbito do controle de constitucionalidade, tanto difuso quanto concentrado. Medidas que, sob o pretexto de proteger o meio ambiente, promovam tratamentos discriminatórios não justificados ou carentes de proporcionalidade correm o risco de serem invalidadas pelo Judiciário — especialmente se não houver compatibilidade com a lógica geral do sistema tributário e se o vínculo com políticas públicas ambientais concretas for apenas retórico.

Além disso, o histórico recente de concessões heterodoxas de isenção do IPVA, como no caso do Estado de Roraima, revela imaturidade institucional no controle das renúncias fiscais e na prevenção de seu uso político-eleitoreiro. Soma-se a isso a preocupação com a captura do discurso ambiental como pretexto para promover guerra fiscal entre Estados, em que o tratamento favorecido ambiental passa a ser usado para favorecer veículos produzidos nesse ou naquele estado.

Da extrafiscalidade à coerência de política pública

O grande desafio é alinhar a tributação ambiental com uma política pública efetiva, coordenada e coerente. Isso exige superar o reducionismo de que basta “pintar de verde” uma alíquota para que ela se torne ambientalmente eficaz.

Políticas tributárias com viés ambiental — como a CIDEs sobre combustíveis, o programa MOVER e agora o IPVA seletivo — só produzem efeitos reais quando inseridas em estratégias integradas, com metas de médio e longo prazo, avaliação de impacto, e articulação interinstitucional.

Nesse sentido, a seletividade do IPVA precisa dialogar com instrumentos como políticas de mobilidade urbana sustentável, não apenas com medidas tributárias. Sem essa coordenação, corre-se o risco de criar redundâncias tributárias, fomentar a insegurança jurídica e aprofundar desigualdades. Aliás, é de se pensar se a incoerência dos instrumentos extrafiscais ambientais propostos pela Constituição não importa em constitucionalidade da própria medida.

Considerações finais

A seletividade ambiental, se mal calibrada, pode se converter apenas em uma medida regressiva, onerando ainda mais os contribuintes de menor renda e aumentando as distorções distributivas. Por outro lado, se bem desenhada, representa uma oportunidade ímpar de reposicionar o sistema tributário como instrumento de transformação socioambiental, não apenas de arrecadação.

A questão central, portanto, não é apenas saber se a Constituição permite uma seletividade ambiental — ela claramente permite —, mas como essa seletividade será operacionalizada dentro de políticas públicas tributárias.

E, portanto, é de se indagar – ineficiência reiterada de política pública tributária importa em inconstitucionalidade da medida extrafiscal?

FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR PILAR COUTINHO — CASCAIS

 

 

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