O Senado e a Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados aprovaram o Projeto de Lei nº 2.791/2022 [1], que trata da arbitragem tributária. Embora o texto dependa de aprovação terminativa pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, já é possível delinear os primeiros contornos da Arbitragem Tributária no Brasil.
A criação do procedimento arbitral para solução de litígios tributários entre fiscos e contribuintes é louvada por boa parte da doutrina e por operadores do Direito Tributário Processual, inclusive a administração pública tributária. Ela é reconhecida como um método alternativo e adequado para dar celeridade à decisão final de controvérsias em matéria fiscal — hoje de competência exclusiva da jurisdição estatal, administrativa e judicial, ante a excessiva demora das decisões finais pelo enorme volume de litígios tributários.
Embora haja quem adote posturas cautelosas no sentido de que a arbitragem tributária venha emprestar da arbitragem comercial roupagem que não lhe sirva adequadamente para julgamento de litígios tributários [2], é certo que a roupagem proposta pelo projeto de lei tem talhe próprio e tamanho ajustado para o uso a que se propõe, ainda que haja semelhanças nos figurinos de cada uma.
Este artigo objetiva mostrar as diferenças de roupagens a serem usadas por um e por outro modelo de arbitragem, a tributária para litígios entre a administração pública e contribuintes, e a comercial para conflitos entre partes privadas, ainda quando possa envolver a própria administração pública em contratos privados.
Na arbitragem comercial entre particulares, prevalece a autonomia das partes quanto à definição do objeto, regras procedimentais, escolha dos árbitros e julgamento por equidade ou direito, sendo, em regra, confidencial. Já na arbitragem com a administração pública, aplica-se o princípio da publicidade, o julgamento deve ser sempre de direito, e os procedimentos seguem regulamentação específica, conforme autorizado pela Lei nº 13.129/2015.
Além das regras de Direito Público já existentes e impostas à arbitragem envolvendo a administração pública (tais regras não impactaram a arbitragem comercial), o objetivo deste artigo é traçar os pontos de contato e de separação entre a arbitragem comercial e a arbitragem tributária, indicando regras especiais da administração pública tributária que não se aplicam à arbitragem comercial e vice-versa.
O que diferencia a arbitragem tributária da arbitragem comercial
Embora os procedimentos sejam similares, não é correto afirmar que serão aplicados igualmente, nem tampouco que o regime especial da arbitragem tributária poderá prejudicar o regime da arbitragem comercial, posto que a matéria substantiva dos litígios de uma e de outra estão submetidos a um conjunto de normas e de princípios jurídicos diferentes, com se passa a expor.
Na arbitragem comercial, admite-se sentenças fundamentadas em critérios que, pelo projeto de lei, não serão admitidos na arbitragem tributária, entre eles, o do julgamento por equidade, expressamente vedado à administração pública em geral, inclusive a comercial.
É importante destacar que o projeto de lei também não admite a arbitragem que envolva decisão sobre o controle de constitucionalidade de norma ou lei. Essa vedação é um limitador material da jurisdição tributária arbitral que não se aplica obrigatoriamente ao contencioso arbitral comercial.
Sabe-se que muitas das discussões tributárias desembocam na aplicação de regras e princípios constitucionais, como por exemplo as normas de imunidade e os princípios da legalidade, da não-cumulatividade, da capacidade contributiva e do não-confisco.
Diante da limitação de julgamento de constitucionalidade a ser imposta à arbitragem tributária pelo projeto de lei, a decisão arbitral tributária deverá se limitar ao controle da legalidade para o enquadramento do fato econômico tributável nos aspectos material, temporal, espacial, quantitativo e pessoal da hipótese de incidência prevista em lei.
No mais, as matérias tributáveis a serem submetidas à arbitragem serão definidas pelos atos administrativos dos entes tributantes e poderão abranger tributos de sua competência e na extensão que for decidida pelas respectivas administrações tributárias. Na arbitragem comercial, não há limitação de matérias contratuais a serem submetidas a julgamento arbitral.
Outro limitador não obrigatoriamente seguido em decisões em arbitragem comercial, é a vinculação do juízo arbitral tributário aos precedentes qualificados previstos no artigo 927, do Código de Processo Civil. Os precedentes judiciais qualificados devem ser seguidos na jurisdição administrativa, e o Projeto de Lei prevê que devam igualmente ser seguidos na jurisdição arbitral, sob pena de nulidade da sentença arbitral.
O sistema de precedentes vinculantes, como se sabe, é importante para a racionalização do contencioso tributário, inclusive do contencioso arbitral tributário, contribuindo para preservar a uniformidade na cobrança de um determinado tributo, preservando a universalidade e a isonomia característica do regime jurídico subjacente à demanda levada para decisão do árbitro.
Pelas mesmas razões, o projeto de lei inclui a regra de que a sentença arbitral se submete ao mesmo regime jurídico de cessação de eficácia da coisa julgada aplicável à sentença judicial em virtude da superveniência do trânsito em julgado de precedente do Supremo Tribunal Federal firmado sob o rito da repercussão geral ou de controle concentrado de constitucionalidade em sentido contrário ao definido na sentença. Tal cessação dos efeitos da coisa julgada não é admitido na arbitragem comercial.
Quanto ao aspecto da consensualidade das partes pela arbitragem, na arbitragem comercial o encontro de vontades e a consensualidade para a instauração do procedimento arbitral depende da vontade simultânea e bilateral das partes quanto a submeter à arbitragem a solução de eventuais conflitos negociais definidos em contrato, o que resulta na formalização de um compromisso arbitral ou na inclusão de uma cláusula compromissória dentro de um contrato, que admite a construção e a flexibilização das regrais procedimentais a serem seguidas.
Em relação à consensualidade na arbitragem tributária, o projeto de lei prevê que ato administrativo do ente federativo tributante manifestará o seu consentimento para aceitar a arbitragem e estabelecerá — unilateralmente e não em contrato bilateral — as hipóteses gerais, as fases procedimentais e os critérios para que o contribuinte possa manifestar seu consentimento pela arbitragem, o que se dará ao apresentar requerimento de submissão à arbitragem tributária de eventual controvérsia previamente autorizada pelo ato administrativo aqui referido.
A manifestação de vontade unilateralmente adotada por fiscos e contribuintes, portanto, será confirmada pela edição de ato administrativo pela Fazenda Pública autorizando submeter determinados temas tributários e aduaneiros a uma jurisdição arbitral especializada; e será confirmada pelo contribuinte ao requerer a jurisdição arbitral especializada para julgar a controvérsia que surgir de situação autorizada pelo referido ato administrativo.
Outras diferenças procedimentais
Quando o litígio envolver crédito tributário com execução fiscal ajuizada, o contribuinte deverá indicar bens em garantia. Trata-se de exigência semelhante àquela prevista para a oposição de embargos à execução fiscal. A garantia prévia do juízo, embora possa ser considerada uma limitação ao livre acesso à tutela jurisdicional, fundamenta-se na presunção de legalidade da dívida inscrita e tem o objetivo de proteger o interesse público e assegurar a efetividade da cobrança do crédito tributário após o litígio. Essa garantia prévia não é exigida na arbitragem comercial.
Na arbitragem tributária, após a manifestação de adesão do contribuinte ao procedimento arbitral e a eventual oferta da garantia, quando exigível, passa-se à escolha dos árbitros e da câmara arbitral credenciada que sediará o procedimento.
Segundo o projeto de lei, o Tribunal Arbitral escolhido, salvo no caso da arbitragem tributária expedita, será formado por três árbitros, dentre os quais um será indicado pelo contribuinte, outro pelo fisco e o terceiro, pelos dois árbitros indicados pelas partes. Caso não haja consenso entre os árbitros indicados, caberá à câmara de arbitragem a escolha do terceiro. Esse procedimento é comum ao da arbitragem comercial.
Quanto às câmaras arbitrais escolhidas para a administração do procedimento arbitral, o projeto de lei estabelece critérios de experiência e exige credenciamento pelas arbitragem tributária. Essa exigência não existe para a arbitragem comercial.
Após a escolha dos árbitros, as partes celebrarão compromisso arbitral, que terá como efeito a estabilização da lide e a suspensão do trâmite dos processos administrativos e das ações judiciais relacionadas.
Na arbitragem tributária, as partes terão o prazo mínimo de 30 dias úteis para apresentação de alegações. A fase de instrução não poderá exceder 12 meses contados da instituição do procedimento, salvo prorrogação por igual período. Após o encerramento da fase de instrução, a sentença arbitral deverá ser proferida no prazo de 60 dias úteis. Quanto aos prazos procedimentais da arbitragem comercial, delega-se às partes a sua fixação.
Assim como na arbitragem comercial, na arbitragem tributária, o árbitro é juiz de fato e de direito, inclusive para decidir sobre a suspensão e extinção do crédito tributário, e a sentença que proferir não é sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário.
Em ambos os casos, a sentença arbitral cria um título executivo judicial. Há, contudo, diferenças em relação ao seu cumprimento. Na arbitragem comercial, se não houver cumprimento espontâneo da sentença arbitral, a parte vencedora deverá recorrer ao Poder Judiciário para instaurar a fase de cumprimento da sentença.
Na arbitragem tributária, na hipótese de sentença arbitral condenatória que imponha obrigação pecuniária à Fazenda Pública, o pagamento ocorrerá por meio da emissão de precatórios ou mediante a compensação com créditos tributários, a critério do contribuinte. Caso o contribuinte seja a parte sucumbente, o inadimplemento dos valores fixados na sentença arbitral dará ensejo à inscrição em dívida ativa e a aplicação das regras gerais de cobrança extrajudicial e judicial dos créditos públicos. Caso já exista execução fiscal ajuizada, a Fazenda Pública poderá executar as garantias indicadas pelo contribuinte no requerimento de adesão ao procedimento arbitral.
As custas e as despesas relativas ao procedimento arbitral tributário, inclusive aquelas atinentes aos honorários arbitrais, serão antecipadas pelo sujeito passivo e, quando for o caso, restituídas conforme deliberação final na instância arbitral. Na arbitragem comercial, as custas e as despesas durante a tramitação do procedimento são, em regra, repartidas e, ao final, redistribuídas conforme a decisão final do processo.
Após a notificação do teor da sentença arbitral, qualquer das partes poderá pleitear ao órgão do Poder Judiciário competente a declaração de nulidade da sentença arbitral, sendo o prazo decadencial de 180 dias para a arbitragem tributária e de 90 dias para a arbitragem comercial.
O rol de hipóteses de nulidade da sentença arbitral é semelhante em ambos os regimes, com o acréscimo, na arbitragem tributária, de algumas causas específicas de nulidade, em especial por contrariedade a precedente qualificado de que trata o artigo 927 do Código de Processo Civil.
Conclusão
Embora o projeto de lei se inspire em aspectos relevantes da arbitragem comercial, a arbitragem tributária se distingue substancialmente por sua vinculação ao regime de Direito Público Tributário que rege as relações obrigacionais entre fiscos e contribuintes.
Essa vinculação impõe à arbitragem tributária limites materiais e procedimentais que não se aplicam à arbitragem comercial, em especial a vedação ao controle de constitucionalidade e a obrigatoriedade de observância dos precedentes qualificados dos tribunais superiores.
Tais restrições são garantias estruturantes do sistema tributário nacional. Ao reconhecer a natureza pública do crédito tributário e a supremacia do interesse público, o projeto de lei reafirma que a arbitragem tributária deve operar sob os princípios e limites próprios do Direito Público Tributário, ainda que se valha de técnicas e estruturas típicas da arbitragem comercial.
Apesar de diferenças, a maior e mais louvada semelhança será a irrecorribilidade e definitividade da decisão arbitral. As partes poderão se beneficiar com a garantia de uma nova jurisdição especializada, com decisões céleres, técnicas e definitivas.
A arbitragem tributária, quando aprovada, terá que se vestir com roupagem própria e figurino especial que não se confunde, como se disse, com roupagem supostamente emprestada de outros institutos, ainda que se utilize supletivamente de componentes já existentes na arbitragem comercial.
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[1] O PL 2.486/2022, como origem na Comissão Temporária para exame de projetos de reforma dos Processos Administrativo e Tributário Nacional, foi aprovado no Senado Federal e remetido à Câmara dos Deputados, onde foi apensado em 9/8/2024 ao PL 2.791/2022, que trata do mesmo tema e já tramitava naquela Casa. No entanto, o parecer aprovado pela Comissão de Finanças e Tributação (CFT) da Câmara dos Deputados em 22/10/2024 recomendou a aprovação do texto do PL 2486/2022. Isso significa que, embora o PL 2.791/2022 seja formalmente o principal (projeto ao qual os demais estão apensados), o conteúdo do PL 2.486/2022 é o que deve prevalecer.
[2] MACHADO. Carlos Henrique. Arbitragem em matéria tributária: não devemos vestir a roupa dos outros. Revista eletrônica Consultor Jurídico. Disponível aqui
FONTE: CONSULTOR JURÍDICO – POR ROBERTO PASQUALIN, OSWALDO OTHON DE PONTES SARAIVA NETO E JULIA DE MENEZES NOGUEIRA