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SÓ UMA “ESPIADINHA” NO IVA EUROPEU: O FUTURO DO IBS/CBS

20 de maio de 2025

O fato de termos um IVA de geração mais avançada fez com que a LC 214 incorporasse, já no texto legal, soluções que a Europa levou décadas para consolidar.

Depois de publicar, em janeiro, o artigo “IBS e CBS: a jurisprudência estrangeira como bola de cristal”, recebi do escritório Rayes & Fagundes, nosso parceiro, o convite para continuar o debate em uma palestra. A tarefa era concreta: comparar a experiência europeia com o texto da Lei Complementar (LC) nº 2 14/2025 e indicar, com base em precedentes do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), os pontos em que nossa neutralidade fiscal pode ser contestada. O presente artigo é inspirado nessa palestra.

É claro que a transposição de precedentes estrangeiros tem limites óbvios: constituições distintas, culturas fiscais próprias e regras processuais que não se comunicam. Ainda assim, o IBS/CBS parte de premissas idênticas às do Imposto sobre Valor Agregado europeu — base ampla, crédito amplo, neutralidade, redução de alíquotas —, o que torna a comparação desses tributos útil para antecipar controvérsias e soluções.

Na União Europeia, o conceito de neutralidade está no coração das principais discussões que chegam ao Tribunal de Justiça da União Europeia, derivado de uma minuciosa descrição na Diretiva IVA. A LC 214 menciona o termo, mas o subordina a “exceções previstas”, sem explicar seu alcance. Falta-lhe, portanto, densidade normativa, correndo o risco de que a mesma ideia de fundo não se desenvolva da mesma maneira na União Europeia e no Brasil. É como se segue:

Artigo 2º da LC 214: O IBS e a CBS são informados pelo princípio da neutralidade, segundo o qual esses tributos devem evitar distorcer as decisões de consumo e de organização da atividade econômica, observadas as exceções previstas na Constituição Federal e nesta Lei Complementar.

Diretiva 2006/112/CE – Art. 1º, 2: O princípio do sistema comum do IVA consiste em aplicar aos bens e serviços um imposto geral sobre o consumo exatamente proporcional ao preço dos bens e serviços, seja qual for o número de operações ocorridas no processo de produção e de distribuição anterior ao estádio de tributação. Em cada operação, o IVA, calculado sobre o preço do bem ou serviço à taxa aplicável ao referido bem ou serviço, é exigível, com prévia dedução do montante do imposto que tenha incidido diretamente sobre o custo dos diversos elementos constitutivos do preço.

Como se vê, nesse artigo, a diretiva entra em detalhes sobre o modus operandi do princípio do sistema comum do IVA. Embora não nomeado no artigo, trata-se sem dúvidas da neutralidade tributária, cujos fins e mecanismos são repetidamente descritos nos considerando da lei.

Já na legislação brasileira, coloca-se apenas a finalidade da neutralidade e apontam se as exceções. É preciso ressalvar que também existem exceções na neutralidade europeia. Mas não se considerou necessário indicá-las ao apontar a regra geral. O modo de operação da neutralidade pode ser extraído tanto da interpretação da lei quanto da própria Constituição ao elencar as características do IBS e da CBS (artigo 156-A).

Mas a necessidade de uma interpretação sistêmica leva à perda da força estruturante desse princípio? Ou, pelo contrário, como a neutralidade do IBS e da CBS é finalística, sua força estruturante é ainda maior?

Embora eu seja, no geral, otimista com a reforma tributária, ao lembrar dos longos debates sobre o termo “cobrado” em relação ao ICMS/IPI ou sobre o creditamento em relação ao PIS e à Cofins, tenho dificuldade em ser otimista quanto a uma interpretação pelo Fisco realmente ampla.

A neutralidade brasileira será, portanto, construída ao longo dos próximos anos. Sobre esse assunto, cito abaixo dois casos, dentre outros que trabalhei na referida palestra, que mostram até que ponto a Corte Europeia tem acolhido e compreendido a composição de um sistema neutro.

Despesas pré-operacionais

A famosa empresa de viagens aéreas Ryanair realizou despesas em consultorias para comprar a Aer Lingus. A aquisição não se concretizou, o que levou a discussões sobre se poderia haver creditamento relativo às despesas que não se converteram em atividade econômica efetiva. O TJUE reconheceu o crédito, considerando os seguintes critérios: (i) intenção seria de exercer atividade econômica e (ii) vínculo direto com futuras operações tributadas.

Logo, passamos a questionar: despesas pré-operação/aquisições serão também creditáveis no sistema nacional, ainda que a operação/aquisição não se concretize?

A Greentech SA comprou de sua coligada GFI uma linha de produção de equipamentos. As duas empresas trataram a operação como uma entrega de bens sujeita a IVA, sendo emitida a regular fatura com o recolhimento do imposto correspondente. Em fiscalização posterior, porém, o fisco romeno requalificou a transação como “transmissão de universalidade de bens” — hipótese situada fora do campo de incidência do IVA. Com isso, a Greentech perdeu o direito de deduzir o imposto já pago e não dispunha, no ordenamento interno, de mecanismo para reaver o valor recolhido.

A decisão europeia foi no sentido de que requalificações retroativas não podem, por si só, destruir o direito à dedução dado ao princípio da neutralidade, sobretudo quando: (i) O imposto foi pago; (ii) não há fraude ou má-fé; (iii) não há mecanismo disponível para reembolso.

Como serão tratadas, no ordenamento brasileiro, as operações em que o Fisco venha a requalificar a natureza da operação envolvida para fora do âmbito de incidência do IVA/creditamento? Serão colocados óbices ao aproveitamento de crédito?

Certamente, o fato de que temos um IVA de geração mais avançada fez com que a LC 214 incorporasse, já no texto legal, soluções que a Europa levou décadas para consolidar — por exemplo, regras específicas para operações mistas.

Mas, de qualquer forma, enquanto não temos certeza sobre até onde irá a interpretação da neutralidade tributária nem qual será o seu modus operandi, ainda nos resta a possibilidade de fazer algo que, no fundo, sempre queremos realizar: olhar para o passado para ter alguma ideia do futuro. É, de novo, uma “espiadinha” nos IVAs estrangeiros.

FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR PILAR COUTINHO — BELO HORIZONTE

 

 

 

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