Verba foi exigida porque o pedido apresentado por trabalhador para reversão de demissão por justa causa foi negado.
A Justiça do Trabalho, em uma decisão inusitada, autorizou o saque de parte do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) de um trabalhador para o pagamento de honorários de sucumbência aos advogados da empresa que ele processou. A verba, no valor de R$ 3,7 mil, foi exigida porque o pedido apresentado para reversão de demissão por justa causa foi negado.
Desde a reforma trabalhista (Lei nº 13.467, de 2017), o empregado deve pagar honorários de sucumbência caso seu pedido não seja deferido pela Justiça do Trabalho. A medida só não vale, segundo decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), para os casos em que há concessão de justiça gratuita.
A decisão foi dada pelo juiz do trabalho substituto da 2ª Vara de Jaú (SP), Gustavo Castro Picchi Martins. Foi emitido ofício para a Caixa Econômica Federal (CEF) fazer a transferência do valor – que equivale a 5% sobre o pedido julgado improcedente.
O pedido para o uso FGTS partiu do próprio trabalhador, que alegou não ter como pagar os honorários de sucumbência, segundo o advogado da empresa, Daniel Chiode, sócio do Chiode Minicucci Littler. Ele acrescenta que nunca viu caso semelhante, mas destaca que essa verba tem natureza alimentar. “Isso abre uma perspectiva nova para execuções de honorários e demonstra uma nova posição em relação à forma de uso do FGTS”, afirma.
No caso, foi negada a reversão da justa causa do trabalhador, aplicada por fraude no controle de ponto em 2021. Imagens de câmeras de segurança comprovaram que o empregado saiu para o intervalo intrajornada em horário diverso daquele que constou no cartão de ponto. De acordo com o empregado, contudo, foi um fato isolado em uma relação de emprego de 20 anos (processo nº 0010074- 37.2022.5.15.0055).
De acordo com a defesa do trabalhador, não dá para atribuir a ele ato de improbidade ou mau procedimento, apontados pela empresa para justificar falta grave e sustentar, “com base em fato isolado”, a justa causa aplicada para a terminação do contrato de trabalho.
O caso percorreu todas as instâncias. No Tribunal Superior do Trabalho (TST), a 5ª Turma aplicou precedente de que a manipulação de cartão de ponto, mesmo que flagrada por apenas uma vez, “configura falta grave o suficiente a romper a fidúcia necessária que deve reger as relações de trabalho”. No entendimento dos ministros, “trata-se, pois, de ato de desonestidade, grave o suficiente a romper o vínculo laboral com aplicação da penalidade máxima” (RRAg-10072-67.2022.5.15.0055).
Para o advogado Rafael Camargo Felisbino, a decisão, embora compreensível sob o ponto de vista da efetividade da execução e da autonomia da vontade do devedor, colide com o princípio da legalidade estrita que rege o saque do FGTS. “O Judiciário deve zelar por soluções eficazes, mas dentro dos marcos legais e da função social dos institutos envolvidos”, diz.
Ainda segundo o advogado, a decisão levanta discussões importantes sobre os limites legais do uso do fundo. “Nem mesmo o consentimento do trabalhador pode servir como autorização para uso fora das hipóteses legais, pois os recursos do FGTS têm destinação legal vinculada e integram uma estrutura que também serve a fins coletivos, como o financiamento de políticas públicas de habitação e saneamento”, afirma ele, acrescentando que a iniciativa pode representar um “precedente perigoso”.
O Ministério do Trabalho e Emprego diz, em nota, que não há previsão legal para o saque do FGTS para pagamento de honorários advocatícios. E cita decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) contrária à liberação de recursos do fundo para essa hipótese (REsp 1913811).
No julgamento, a 4ª Turma entendeu que o saldo do FGTS não pode ser bloqueado para o pagamento de créditos relacionados a honorários advocatícios – sejam contratuais ou sucumbenciais, em razão da impenhorabilidade absoluta prevista no artigo 2º, parágrafo 2º, da Lei nº 8.036, de 1990.
De acordo com os ministros, as circunstâncias que autorizam o saque do FGTS são restritas e destinam-se a garantir suporte financeiro ao trabalhador em casos que possam comprometer gravemente sua subsistência e dignidade, como no desemprego involuntário, aposentadoria e doenças graves.
Para os ministros, os honorários advocatícios, embora reconhecidos como créditos de natureza alimentar, não têm o mesmo grau de urgência e essencialidade que os créditos alimentícios tradicionais, o que justifica o tratamento diferenciado.
A jurisprudência do STJ, segundo Samanta de Lima Soares Moreira Leite Diniz, do Innocenti Advogados Associados, tem admitido a penhora de salários e vencimentos para o pagamento de prestações alimentícias, mas não estende essa possibilidade ao FGTS, que possui regramento próprio e finalidades específicas, como garantir a subsistência do trabalhador em momentos de vulnerabilidade.
“As autorizações judiciais para pagamento de dívidas do trabalhador fora das hipóteses previstas na Lei nº 8.06/1990 violam o ordenamento jurídico e o entendimento consolidado dos tribunais superiores, que reconhecem o FGTS como impenhorável”, afirma a advogada.
Caso decisões semelhantes passem a ser proferidas, haveria, acrescenta, o risco de desvirtuamento da finalidade social do fundo e comprometimento de políticas públicas que utilizam seus recursos, especialmente os programas de habitação popular, que são financiados em larga escala com verbas do FGTS.
FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR BEATRIZ OLIVON — DE BRASÍLIA