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A REFORMA TRIBUTÁRIA TRAZ SEGURANÇA JURÍDICA PARA OS FIDC

20 de dezembro de 2024

A reforma tributária aprovada pelo Congresso trouxe uma série de mudanças importantes em relação ao projeto original do PLP n° 68/2024, com correções estruturais relevantes para a entrada em vigor do IVA dual brasileiro, composto pelo imposto sobre bens e serviços (IBS), de titularidade dos estados e municípios, e pela contribuição sobre bens e serviços (CBS), da União, além do imposto seletivo. Em alguns casos, havia regimes diferenciados que não estavam autorizados pela Emenda Constitucional nº 132/2023, o que justificaria a devida correção.

Dentre os aprimoramentos alcançados pelo Congresso ao longo da tramitação do PLP n° 68/2024, há que se destacar o regime de tributação dos fundos de investimento em direitos creditórios. O regime aprovado na Câmara de Deputados, no primeiro turno, tratava diferentemente os fundos que operam com recebíveis e os fundos de investimento em direitos creditórios, a depender do modo de formalização do recebível liquidado antecipadamente, bem como entre os FIDC e as instituições financeiras que realizam a mesma atividade de liquidação antecipada de recebíveis de arranjos de pagamento. Uma afronta evidente aos princípios da isonomia, da neutralidade e de defesa da concorrência, como veremos.

O PLP n° 68/2024, na forma como recebido pelo Senado, trazia, no seu artigo 211, §§ 1° e 3°, que, no caso do FIDC e demais fundos de investimento que liquidam antecipadamente recebíveis de arranjos de pagamento, a base de cálculo do IBS e da CBS seria equivalente ao desconto aplicado na liquidação antecipada, com a dedução apenas do valor correspondente à curva de juros futuros da taxa Selic, pelo prazo da antecipação. Para estes fundos de investimento, não se previa qualquer exceção à tributação.

Regime vantajoso

Os FIDC que liquidam antecipadamente recebíveis comerciais por meio de desconto de títulos de crédito (como duplicatas, notas promissórias e cheques), de se ver, gozariam de um regime tributário bem mais vantajoso, nos termos dos artigos 190 e 185 então propostos, que excepcionavam a tributação de fundos classificados como entidades de investimento, bem como permitiam uma ampla dedução de despesas da base de cálculo, inclusive despesas financeiras com a captação de recursos.

A tributação das operações de crédito realizadas por instituições financeiras, por sua vez, inclusive a operação de antecipação de recebíveis de arranjos de pagamento, seguiriam tributadas com base no referido artigo 185, a qual, na forma então proposta, admitia uma série de deduções, tais como despesas financeiras com captação de recursos, além de perdas incorridas no recebimento de créditos.

Sugeria-se, deste modo, a criação de regime tributário extremamente mais gravoso para os FIDC que liquidam antecipadamente recebíveis de arranjos de pagamento em comparação com o regime proposto para os FIDC que liquidam antecipadamente recebíveis comerciais por desconto de títulos mercantis e as instituições financeiras que liquidam antecipadamente recebíveis de arranjos de pagamento. A inconstitucionalidade destas disposições era evidente, dada sua incompatibilidade com os princípios da isonomia, neutralidade e livre concorrência.

A redação final do PLP n° 68/2024, na forma como proposta pelo Senado e aprovada pela Câmara, superou as disfuncionalidades apontadas e equiparou o regime tributário aplicável aos diferentes FIDC que liquidam antecipadamente recebíveis e às instituições financeiras.

No caso das instituições financeiras (bancos), manteve-se o amplo rol de deduções permitidas para fins de determinação da base de cálculo do IBS e da CBS incidentes sobre as operações de crédito, nos termos do artigo 192.

O regime tributário aplicável aos FIDC que liquidam antecipadamente recebíveis comerciais por desconto de títulos mercantis, por sua vez, está previsto no artigo 193 do PLP n° 68/2024. Vale lembrar que aqui estão todas aquelas operações com os recebíveis de cartões de créditos, como forma de adiantar para as empresas o valor de parcelas futuras, por exemplo.

Neste caso, a base de cálculo do IBS e da CBS corresponderá ao desconto aplicado na liquidação antecipada, com a dedução de despesas financeiras com a captação de recursos e despesas da securitização (§ 1°), além das perdas incorridas no recebimento de créditos, na sua cessão e na concessão de descontos (§ 2°). Foi mantida a disposição que afasta a tributação dos fundos de investimento classificados como “entidade de investimento” (§ 5°).

Quanto ao regime tributário dos FIDC e demais fundos de investimento que liquidam antecipadamente recebíveis de arranjos de pagamento, objeto das principais alterações, este encontra-se previsto no artigo 219. A base de cálculo do IBS e da CBS equivale ao desconto aplicado na liquidação antecipada, com a dedução de valor correspondente à curva de juros futuros da taxa DI, pelo prazo da antecipação (§1°). No entanto, em oposição ao regime inicialmente proposto, admite-se, ainda, a dedução das perdas incorridas no recebimento de créditos e as perdas na cessão destes créditos e na concessão de descontos, desde que sejam realizados a valor de mercado (§ 2°).

De outra banda, o § 6° do artigo 219 dispõe expressamente que, quando classificados como “entidade de investimento” de acordo com o disposto no artigo 23 da Lei nº 14.754/2023, o FIDC e os fundos de investimento que liquidam antecipadamente recebíveis de arranjos de pagamento não serão considerados contribuintes do IBS e da CBS.

Estes aperfeiçoamentos foram necessários para garantir a isonomia e constitucionalidade do regime de tributação dos FIDC que liquidam antecipadamente recebíveis de arranjos de pagamento, em prol não apenas dos princípios da isonomia, neutralidade e livre concorrência, como também do tratamento favorecido assegurado constitucionalmente às micro e pequenas empresas (artigo 170, inciso IX, CF), por serem estes os principais beneficiários das vantagens deste mercado.

De fato, a imposição de tributação mais gravosa aos FIDC que liquidam antecipadamente recebíveis de arranjos de pagamento, ao fim e ao cabo, encareceria operações de extrema relevância para a atividade de micro e pequenas empresas, o que seria extremamente prejudicial para os pequenos negócios, como dito acima.

Micro, pequenas e médias empresas enfrentam muitas dificuldades para acessar crédito de instituições financeiras tradicionais, em função de fatores como a falta de histórico financeiro, a elevada burocracia, a falta de garantias, dentre outros. Nesse sentido, operações de antecipação de recebíveis são uma alternativa essencial para suas atividades.

Deveras, caso houvesse a tributação mais gravosa dos FIDC que liquidam antecipadamente recebíveis de arranjos de pagamento, ainda que este custo não recaísse diretamente sobre as empresas de pequeno porte, o impacto nas suas atividades seria inegável, pois haveria o incremento do custo de obtenção do capital de giro por meio desta modalidade e, consequentemente, aumento do endividamento das empresas, tendo em vista que, com o encarecimento da antecipação de recebíveis, o recurso aos empréstimos tenderia a aumentar.

Para além dos benefícios aos pequenos negócios, a equiparação do regime tributário dos diferentes FIDC e das instituições financeiras que liquidam antecipadamente recebíveis comerciais, sejam estes provenientes de arranjos de pagamento ou títulos mercantis, constitui outra grande conquista em termos de isonomia, neutralidade e livre concorrência.

O artigo 150, inciso II, da Constituição, ao consagrar a não discriminação tributária, prescreve: é vedado instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente. A realização deste princípio pressupõe a utilização de referenciais justificáveis, aos quais deverá ser feito o juízo de igualdade, de tal modo que aqueles que se encontrem em situações comparáveis, relativamente a um determinado referencial, deverão receber o mesmo tratamento jurídico.

A distinção existente entre estas operações consiste única e exclusivamente no modo de captura e formalização do negócio jurídico original. De um lado, os recebíveis decorrentes de “arranjos de pagamento” têm como origem primária a realização de negócios jurídicos de compra e venda de bens e serviços, porque correspondem às receitas que os lojistas têm a receber das operadoras de máquinas de cartões pelas vendas realizadas a seus consumidores por meio de cartão de crédito ou débito em seu estabelecimento.

Por outro lado, estes mesmos negócios jurídicos de compra e venda de bens e serviços, quando não são adquiridos (“capturados”) por intermédio das máquinas de cartões, podem ser utilizados para a emissão de uma duplicata ou quitados por meio de cheques ou nota promissória, mas referidos títulos de crédito não afetam a natureza do negócio original subjacente. Em ambos os casos, a natureza da operação praticada pelo FIDC ao antecipar os recebíveis é a mesma. Qualquer distinção de regime tributário representaria discrímen arbitrário indevido, sem qualquer critério que constitucionalmente o autorize.

Princípio da neutralidade

Por tudo isso, a equiparação dos referidos regimes tributários deve ser celebrada também à luz do princípio da neutralidade (artigo 156-A, § 1°, CF), inserido de forma expressa no rol dos princípios constitucionais tributários pela Emenda Constitucional nº 132/2023. O referido princípio preconiza, nos termos do artigo 2° do próprio PLP n° 68/2024, que o IBS e a CBS não devem distorcer decisões de consumo (i) e de organização da atividade econômica (ii).

O princípio da neutralidade consiste, pois, em um dos pilares do Imposto sobre Valor Agregado (IVA) no mundo, cuja implementação é recomendada de modo expresso pela OCDE. [1] Deste modo, negar a neutralidade do IBS e da CBS corresponderia a desnaturar a própria razão de ser destes tributos enquanto IVA dual adotado pelo Brasil.

A criação de regime tributário mais benéfico para FIDC que liquidam antecipadamente recebíveis comerciais como duplicatas e notas promissórias distorceria as decisões de consumo em favor destes, ao encarecer a alternativa de obtenção de fluxo de caixa por meio da antecipação de recebíveis de arranjos de pagamentos. O IBS e a CBS tornar-se-iam motivos determinantes na escolha, pelo comerciante, da fonte de seu capital de giro, o que não faria o menor sentido do ponto de vista da praticabilidade e da justiça tributária.

Também as decisões relativas à organização da atividade econômica seriam distorcidas, ao se privilegiar, pelos FIDC, a antecipação de outros recebíveis comerciais em detrimento dos recebíveis de arranjos de pagamento. Essas distorções na organização da atividade econômica e nas escolhas de consumo significariam, igualmente, violação ao princípio da livre concorrência (artigo 170, inciso VI, CF), que se relaciona, sobretudo, com a viabilidade de desempenho de atividades econômicas lícitas pelos mais diversos atores.

Fosse mantido um regime de tributação mais gravoso para os fundos que liquidam antecipadamente recebíveis de arranjos de pagamento, isso prejudicaria não apenas o livre acesso de competidores ao mercado, como também a permanência dos FIDC que realizam esta operação. Criar-se-ia, em contrapartida, uma vantagem concorrencial para os FIDC que liquidam antecipadamente recebíveis comerciais formalizados por outros instrumentos, em patente ofensa ao princípio da livre concorrência.

Desígnios arrecadatórios não podem, como visto, justificar o atropelo de princípios constitucionais em matéria tributária. O Senado e a Câmara, com a colaboração da sociedade civil, materializada nas inúmeras audiências públicas realizadas ao longo da tramitação do PLP n° 68/2024, atuaram, verdadeiramente, como “filtros da cidadania”, a assegurar a compatibilidade dos dispositivos analisados com o texto constitucional.

Por todos estes motivos, deve-se celebrar o novo regime de tributação dos fundos de investimento em direitos creditórios na forma como aprovado na Câmara de Deputados, na redação final do PLP n° 68/2024. A alteração das disposições relativas ao tema, ao longo da tramitação do projeto, consiste em exemplo paradigmático da reflexão e aprimoramento das propostas nas casas legislativas, o que expressa o melhor dos princípios republicano e democrático na prática da nossa Constituição.

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[1] OCDE. Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). International VAT/GST Guidelines. Paris: OECD Publishing, 2017, p. 4.

FONTE: CONSULTOR JURÍDICO – POR HELENO TAVEIRA TORRES

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