Depois da reforma, carga de impostos da saúde dependerá da alíquota base do IVA dual
Depois de muita discussão técnica e negociação política, foi aprovada na Câmara dos Deputados em julho a regulamentação da reforma tributária. Segundo o Projeto de Lei Complementar 68/2024, agora no Senado, a área da saúde está entre as que entrarão em um regime diferenciado, por ter caráter essencial. Essa inserção, no entanto, não necessariamente assegura redução de carga tributária: o tamanho do peso dos tributos sobre produtos e serviços de saúde vai depender das características de cada subsegmento — e, às vezes, até do perfil e da atividade de cada contribuinte — e de definições como a da alíquota de referência da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), ainda em aberto.
Esses dois tributos compõem o chamado Imposto sobre Valor Agregado (IVA) dual, modelo que permite a segregação do que é de competência da União (CBS) e dos Estados e municípios e do Distrito Federal (IBS), de forma que seja mantida a equidade da distribuição da arrecadação de tributos sobre o consumo entre os entes federativos. A CBS substitui o PIS e a Cofins e o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) — federais —, enquanto o IBS fica no lugar do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), tributo estadual, e do Imposto sobre Serviços (ISS), que vai para os cofres dos municípios e do Distrito Federal. A reforma foi aprovada pelo Congresso em dezembro de 2023, quando foi votada a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 45/2019, e tem um período de transição a ser iniciado em 2026.
O tratamento especial dispensado à saúde envolve a redução de 60% da alíquota base da CBS e do IBS ou isenção da cobrança desses tributos (a depender de algumas condições) para medicamentos, dispositivos médicos e de acessibilidade pessoal, produtos relacionados à saúde menstrual e serviços de saúde. Para fazer valer a redução ou a isenção dos tributos, a regulamentação inclui listas taxativas com os produtos e serviços incluídos no benefício, anexos que terão revisões periódicas para a inserção de novos itens a serem favorecidos pelo regime diferenciado. Outro ponto importante da reforma é a isenção dos tributos para as vendas de mais de 300 produtos efetuadas para o Sistema Único de Saúde (SUS). O fornecimento para entidades filantrópicas e beneficentes que prestam serviços para o SUS, entretanto, não terá acesso a essa isenção.
Considerando que o caminho até a efetiva implementação da reforma tributária é longo, por ora não é possível cravar, na opinião de tributaristas, se o setor de saúde terá uma redução de carga tributária. Mas a sensação geral é de que, no mínimo, haverá neutralidade nesse sentido em relação ao modelo de tributação que está em vigor hoje na maior parte dos subsetores de saúde, o que é coerente com o próprio princípio da reforma de melhorar as condições de setores essenciais.
“Não é possível dizer se haverá ou não aumento de carga para o setor de saúde como um todo, mas eu diria que para a maior parte ficará igual. Deve haver aumento, por exemplo, para sociedades uniprofissionais de médicos, que hoje estão sujeitas a um regime benéfico de ISS, imposto que, na reforma, será substituído pelo IBS”, afirma a tributarista especializada no setor de saúde Fernanda Lains, sócia do escritório Bueno Tax Lawyers. Na avaliação dela, a carga para hospitais e laboratórios deve ficar neutra. Para Douglas Mota, sócio da área tributária do escritório Demarest Advogados, sem o texto final da reforma não é muito seguro dizer como vai ficar a carga tributária. “Ainda não sabemos qual será a alíquota de base da CBS e do IBS, mas é possível imaginar que a carga subirá em alguns casos”, destaca.
Inicialmente, portanto, o tamanho da carga tributária vai depender da alíquota base do IVA dual (CBS e IBS). Um percentual de 26,5% para a alíquota de referência do IVA dual foi projetado pelo Ministério da Fazenda, considerando um certo freio nos regimes de benefícios —lembrando que essas exceções são resultado de longos processos de negociação com o Congresso, quase sempre influenciadas também pelos lobbies dos mais variados setores. A alíquota pode superar os 26,5% caso sejam acatados pelo Senado novos pedidos de inclusão em regimes menos apertados em termos tributários, o que não pode ser descartado.
Se não é possível por ora dizer com certeza como vai ficar a carga tributária de subsegmentos de saúde, contudo, em um ponto os especialistas concordam: a reforma vai simplificar a gestão dos tributos, com ganhos importantes em eficiência e redução de custos em logo prazo (já que, inicialmente, podem até aumentar gastos com as adaptações). Como observa Eduardo Muniz, sócio do escritório Bento Muniz Advocacia, a legislação tributária é hoje muito dispersa, com numerosas normas federais, estaduais e municipais. “No caso do ICMS, por exemplo, cada Estado tem uma legislação própria, o que dificulta a gestão tributária da venda de remédios e dispositivos médicos entre diferentes Estados”, comenta Muniz. “A reforma oferece maior previsibilidade”, completa, citando outros pontos positivos, como a não cumulatividade plena (que impede o pagamento de tributos sobre tributos) e a previsão de crédito financeiro.
Um aspecto que causa preocupação entre os tributaristas — e que vai contra o intuito da reforma de reduzir a quantidade de processos na Justiça relacionados a impostos e contribuições — é a ideia de inserir em rol taxativo cada produto beneficiado pelo regime de redução ou isenção de CBS e IBS. “Com essa opção pelas listas, a reforma já nasce com as portas abertas para o contencioso, que pode aumentar em vez de diminuir”, avalia Ana Carolina Monguilod, sócia do escritório CSMV Advogados e professora do Insper. Isso porque, pelo próprio avanço da medicina e da ciência, a cada dia surgem novos dispositivos médicos e medicamentos, e muitos deles podem ficar de fora do benefício tributário simplesmente por não estarem no rol. O texto aprovado estabelece revisões das listas a cada 120 dias, mas só permite a inserção de itens inexistentes na data de revisão anterior. Isso seria um problema, considerando que normalmente esses produtos são lançados pelos fabricantes como uma evolução de gerações anteriores, e não do zero. Assim, não seria surpresa ver quem está fora do rol reclamar um tratamento isonômico no Judiciário.
FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR REJANE AGUIAR