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REFORMA: NÃO CUMULATIVIDADE E BENS DE USO E CONSUMO PESSOAL

2 de agosto de 2024

A tributação do fornecimento de bens e serviços para uso e consumo pessoal de pessoas é medida correta e indispensável para se cumprir o princípio da neutralidade

Um dos pilares da reforma tributária é a não cumulatividade dos novos tributos – o IBS e a CBS. Como tributos do tipo IVA (Imposto sobre o Valor Agregado), o IBS e a CBS são plurifásicos, incidindo sobre todas as operações com bens e serviços ao longo da cadeia produtiva. Por ser um tributo sobre o consumo, o ônus econômico do IVA deve recair sobre o consumidor final. Assim, para que não haja tributação em cascata e para assegurar a desoneração no meio da cadeia, o IVA é não cumulativo. Na prática, a não cumulatividade significa que os adquirentes no meio da cadeia podem tomar crédito do tributo pago nas suas aquisições de bens e de serviços, o que faz com que não sejam onerados.

A Emenda Constitucional (EC) nº 132/23 diz que o IBS e a CBS serão não cumulativos, compensando-se os tributos devidos pelo contribuinte com os montantes cobrados sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bens ou serviços. Essa redação é mais ampla do que a regra da não cumulatividade existente em outros países. A Diretiva Europeia do IVA prevê que o sujeito passivo tem direito à dedução “quando os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas”. No Canadá, permite-se o creditamento do imposto pago na aquisição de bens e de serviços que sejam utilizados em atividades comerciais. Já na Nova Zelândia, o imposto suportado nas aquisições pode ser deduzido na medida em que os bens ou serviços sejam usados para a realização de fornecimentos tributáveis. Percebe-se que a regra do creditamento nesses países sempre traz um condicionante: a utilização das aquisições para fins de operações tributadas ou atividades comerciais.

A EC 132/23, ao contrário, não trouxe condicionante similar para a tomada do crédito, já que menciona expressamente que todas as aquisições de bem ou de serviço darão direito ao crédito. A EC 132/23 optou por delimitar o creditamento não através de condicionantes para o seu exercício, mas por suas exclusões: as aquisições de bens e serviços consideradas de uso ou consumo pessoal e as hipóteses previstas pela própria Constituição.

O objetivo da restrição do crédito relativo a bens e serviços de uso e consumo pessoal é tributar situações de consumo final e privado do próprio contribuinte ou de pessoas a ele relacionadas. Por serem aquisições que não têm relação ou não são necessárias para as atividades econômicas do contribuinte, o crédito do IVA pago nessas aquisições não é devido. O PLP 68/24 já aprovado na Câmara dos Deputados elenca as hipóteses de bens de uso e consumo pessoal que não darão direito a crédito: joias, pedras e metais preciosos, obras de arte e antiguidades de valor histórico ou arqueológico, bebidas alcoólicas, derivados do tabaco, armas e munições, e bens e serviços recreativos, esportivos e estéticos.

Esse tipo de restrição ao creditamento também é comum em outros países. Na França, além da regra geral de indedutibilidade de créditos relativos a bens e serviços adquiridos para fins privados e que não tenham ligação direta com operações tributáveis, veda-se também o creditamento de bens fornecidos gratuitamente, especialmente a título de salário, gratificação, bonificação ou presente, qualquer que seja o beneficiário. Além disso, o crédito também é vedado quanto às despesas de habitação efetuadas em benefício de dirigentes ou colaboradores da empresa, e relativas a veículos e serviços de transporte de passageiros. No Canadá, o crédito é vedado: i) no caso de bens ou serviços destinados ao uso, consumo ou benefício pessoal de empregado ou parente do inscrito; ii) na locação, arrendamento ou licença, para consumo, uso ou benefício pessoal de um indivíduo relacionado ao inscrito; iii) e em casos específicos, em que o creditamento é parcial, como na aquisição e aluguel de veículo de passageiros e aeronaves e nas despesas com alimentos, bebidas ou entretenimento, qualquer que seja a finalidade.

Além da restrição ao creditamento, uma outra maneira de se tributar esse consumo final é através da incidência do IVA sobre o fornecimento de bens de uso e consumo pessoal a pessoas relacionadas. Esse é o caso da Nova Zelândia, que determina a aplicação do IVA sobre “fringe benefits”. Essa tributação se fundamenta no fato de que o empregador está fornecendo bens e serviços para consumo pessoal do empregado, e esse fornecimento deve ser tributado da mesma maneira que os bens e serviços fornecidos diretamente por terceiros.

O PLP 68/24 trouxe tal previsão ao determinar a incidência do IBS e da CBS sobre o fornecimento não oneroso ou a valor inferior ao de mercado de bens e serviços para uso e consumo pessoal do próprio contribuinte, quando este for pessoa física, ou de empregados, sócios, acionistas, administradores e membros de conselhos do contribuinte. O projeto traz uma lista exemplificativa dos bens de uso e consumo pessoal sobre os quais haverá incidência do IBS e da CBS: habitação, veículo, equipamentos e serviços de comunicação, saúde, educação, alimentação, bebidas e seguro, salvo se utilizados exclusivamente na atividade econômica do contribuinte.

A tributação do fornecimento de bens e serviços para uso e consumo pessoal de pessoas relacionadas ao contribuinte, na linha do PLP 68/2024, é medida correta e indispensável para se cumprir o princípio da neutralidade e evitar diferenças na tributação entre o fornecimento feito por meio do contribuinte e aquele realizado diretamente pelo fornecedor.

Melina Rocha é consultora internacional para o BID e especialista em IVA, doutora pela Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3 e coordenadora executiva do GT IVA do NEF/FGV-SP

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR MELINA ROCHA

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