Nenhuma reforma no mundo pós-moderno é capaz de apagar a complexidade própria dos fatos econômicos
Quase considerei que não devia. Que o Brasil deveria ter a liberdade de criar um IVA brasileiro, um IVA que tivesse DNA tupiniquim. Mas a curiosidade foi mais forte que o patriotismo e rapidamente me peguei comparando o conceito de contribuinte no projeto de lei complementar que regulamenta a reforma tributária sobre o consumo com o mesmo conceito na Diretiva IVA. Transcrevo os dois artigos:
PLP nº 68/2024:
Art. 21. É contribuinte do IBS e da CBS:
I – o fornecedor que realizar operações:
a) no desenvolvimento de atividade econômica;
b) de modo habitual ou em volume que caracterize atividade econômica; ou
c) de forma profissional, ainda que a profissão não seja regulamentada;
II – aquele previsto expressamente em outras hipóteses nesta Lei Complementar.
Diretiva IVA:
Sujeitos passivos – Artigo 9º 1. Entende-se por «sujeito passivo» qualquer pessoa que exerça, de modo independente e em qualquer lugar, uma atividade económica, seja qual for o fim ou o resultado dessa atividade. Entende-se por «atividade económica» qualquer atividade de produção, de comercialização ou de prestação de serviços, incluindo as atividades extrativas, agrícolas e as das profissões liberais ou equiparadas. É em especial considerada atividade econômica a exploração de um bem corpóreo ou incorpóreo com o fim de auferir receitas com caráter de permanência.
Os dois dispositivos têm uma dose de similaridade. A principal é que ambos rodeiam o conceito de “atividade econômica”. Mas, estruturalmente, os dois dispositivos não são iguais. O conceito brasileiro parece adicionar requisitos específicos, em uma espécie de lista cumulativa, embora a partir de conceitos jurídicos indeterminados (modo habitual, volume que caracteriza atividade econômica, forma profissional). O conceito europeu também centra sua determinação indeterminada no conceito de atividade econômica, a qual não condiciona, mas exemplifica (produção, comercialização, exploração de bem corpóreo com o fim de auferir receitas com caráter de permanência, etc).
O artigo do PLP é obviamente uma herança do dispositivo do ICMS que conceitua contribuinte como: “Art. 4º Contribuinte é qualquer pessoa, física ou jurídica, que realize, com habitualidade ou em volume que caracterize intuito comercial, operações de circulação de mercadoria ou prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior”.
Parece-me uma bengala. Por que não usar o conceito aberto que condiz com a materialidade do fato gerador do IBS/da CBS? Por que beber na fonte do ICMS quando a intenção foi evitar justamente a complexidade desse tributo e seus parentes? Poderia, por exemplo, um senhor que recebe renda do Airbnb de forma permanente, alegar que não cabe lhe exigir IBS/CBS sob o argumento que não o faz de forma profissional?
Uma empresa é a desenvolvedora de aplicativos de jogos para dispositivos móveis que são distribuídos por meio de um marketplace de aplicativos (TJUE,C-101/24). No mundo real, tratava-se de uma empresa desenvolvedora alemã, fornecendo os aplicativos a clientes finais europeus, por meio de um marketplace operado por um sujeito passivo irlandês. A considerar a tributação no país de destino, quando e onde incide o IVA? O caso é europeu, mas a dúvida ainda seria a mesma caso todos os envolvidos estivessem no Brasil, afinal, há duas prestações de serviços e qual o local de destino de cada uma delas?
A conversão do Brasil ao modelo IVA reduz drasticamente duas velhas perguntas sobre a qual giravam as discussões doutrinárias, cotidianas e jurisprudenciais. Incide algum tributo aqui? Qual? A ordem dessas perguntas tampouco não era tão simples eis que muitas vezes era preciso passar item a item no fato gerador potencialmente conflituoso de IPI, ICMS, ISSQN.
No entanto, nenhuma reforma tributária no mundo pós-moderno é capaz de apagar a complexidade própria dos fatos econômicos, de contratos com obrigações recíprocas, com modelos de negócios fluidos. Que não há muita clareza, no mundo moderno, sobre quem presta o quê e para quê.
Com a definição da preponderância do lugar de destino para a incidência do IBS, uma velha questão filosófica foi resolvida: o tributo passa a ser recolhido no local em que a demonstração de riqueza consumo foi demonstrada. Entretanto, não há simplismos aqui: a Reforma Tributária sobre o Consumo não pode resolver a complexidade do próprio consumo e da economia. Por outro lado, deve haver sempre cuidado na importação de modelos e sistemas de outros países que podem não se adequar à realidade local.
Mas igual cuidado deve ser tomado quanto ao que escolheremos herdar ou não do sistema tributário anterior, sob pena de reduzir – e muito – a capacidade descomplicadora da reforma. Na certeza, afinal, de que quem não descomplica, se “estrumbica”.
FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR PILAR COUTINHO