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FRAUDES, RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA E O PLP 68/2024

26 de julho de 2024

A inovação legislativa já provoca discussões acerca da ilegalidade da eventual transferência do dever de coibir fraudes, da desproporcionalidade dessa obrigação e da violação à capacidade contributiva e à razoabilidade.

É quase consenso que pessoas íntegras não devem contribuir para fraudes praticadas por terceiros. Então por qual motivo no Direito Tributário haveria de ser diferente? Em 2024 ainda podemos defender que ilícitos praticados por fornecedores e clientes, quando só puderem ser concretizados com consciente intervenção ou omissão de outras pessoas, apenas dirão respeito às Fazendas Públicas e aos sujeitos diretamente envolvidos?

Embora a fiscalização do cumprimento de obrigações tributárias seja de indelegável atribuição das autoridades administrativas, pessoas físicas e jurídicas podem assumir papel relevante na cobrança da conformidade fiscal de parceiros comerciais.  É dentro dessa diretriz que o Projeto de Lei Complementar 68/2024 (PLP 68/2024), que regulamenta a Reforma Tributária, visa alterar o ordenamento ao introduzir novas hipóteses de responsabilidade solidária, dentre elas as previstas no artigo 24, V, alíneas ‘a’ e ‘b’, que dispõem sobre a solidariedade do terceiro que concorre, ativa ou passivamente, para o descumprimento de obrigações tributárias.

A responsabilidade e o dever de vigilância aqui tratados não são ilimitados e não autorizam que o responsável solidário responda por ato que não tenha qualquer ingerência e conhecimento. Isso seria inconstitucional e ilegal. Ocorre que o artigo – ao dispor que são solidariamente responsáveis pelo pagamento do IBS e da CBS qualquer pessoa física ou jurídica que concorra por seus atos e omissões para o descumprimento de obrigações tributárias, por meio de ocultação da ocorrência ou do valor da operação ou abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial – não transferiu aos particulares o dever de fiscalizar e tampouco a obrigação de denunciar, mas apenas e tão somente ter contemplado o dever de não concorrer para a prática de fraudes, como se fossem fatos alheios a quem contrata ou toma o serviço, adquire ou vende um bem ou  direito etc., sob pena da responsabilidade solidária pelos ilícitos fiscais.

Segundo o PLP, há duas hipóteses em que o ato ou a omissão concorrem para a fraude e autorizam a solidariedade tributária: ocultação da ocorrência ou do valor da operação e abuso da personalidade jurídica. No primeiro caso (alínea ‘a’ do artigo 24, V), apesar da redação do enunciado deixar margem à interpretação, o “valor ocultado” deve ser entendido de forma ampla, a fim de contemplar tanto o montante parcialmente omitido, quanto a integralidade do crédito tributário na hipótese de o fato gerador ter sido ocultado e nenhum montante oferecido à tributação. Além disso, o valor que o terceiro deverá suportar limita-se ao tributo não pago, sendo irrelevante a existência de outros débitos em nome do devedor originário.

Já na segunda hipótese (alínea ‘b’), o PLP incorporou à legislação tributária parte do artigo 50 do Código Civil. Além das materialidades (desvio de finalidade e confusão patrimonial) para o CBS e a IBS, o auditor fiscal poderá promover a desconsideração da personalidade jurídica, fazendo o ato não ser de competência exclusiva do Poder Judiciário.

A inovação legislativa já provoca discussões acerca da ilegalidade da eventual transferência do dever de coibir fraudes, da desproporcionalidade dessa obrigação e Filho de Maduro acredita na vitória do pai, mas promete respeitar eventual derrota da violação à capacidade contributiva e à razoabilidade. Em que pese as justificadas preocupações, há que se distinguir os deveres de colaborar e não concorrer para fraudes, da obrigação de fiscalizar propriamente dita; de situações de ação ou omissão conscientes por meio das quais contribui-se para a ocultação da ocorrência ou do valor da operação e do abuso da personalidade jurídica, daquelas em que os responsáveis tributários nada sabiam e que, portanto, não poderiam ser responsabilizados.

Nesse sentido, as alíneas ‘a’ e ‘b’ do artigo 24, V, ao enumerar os fatos que ensejam a responsabilidade, confirmam a necessidade de prática dolosa. A norma, portanto, deve ser assim entendida e aplicada a fim de não violar a Constituição e o artigo 128 do Código Tributário Nacional. Trata-se de um verdadeiro e necessário avanço em prol da regularidade fiscal, dada as limitações do “interesse comum” previsto no artigo 124, I, do mesmo Código.

Esse entendimento também se alinha com o item 13.1 do Parecer Normativo Cosit/RFB 04/2018, que afirma que “não é qualquer ilícito que pode ensejar a responsabilidade solidária. Ela deve conter um elemento doloso a fim de manipular o fato vinculado ao fato jurídico tributário”.

Portanto, a comprovação da consciência do ilícito praticado por clientes e fornecedores, que só pôde ser concretizado por ação ou omissão concorrente do responsável solidário, é o grande cuidado que as administrações tributárias precisarão ter, a fim de não se exigir dos particulares conduta descabida e desproporcional, e tampouco transformar a responsabilidade tributária em instrumento inidôneo para o aumento de arrecadação.

Por outro lado, assumindo que a dinâmica dos negócios, o acesso à informação e a conformidade fiscal mudaram com o avanço tecnológico, para as hipóteses em que as fraudes somente puderam ocorrer por conta da contribuição consciente do sujeito solidário – ativa ou omissiva, direta ou indireta – a ausência de responsabilidade seria um atraso diante do interesse coletivo de uma sociedade mais íntegra e justa.

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR MARIA RITA FERRAGUT

 

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